domingo, 18 de dezembro de 2016

Pequeno delírio explicativo sobre o Schéma L





     Comecemos pelo canto inferior direito: A (Autre), o grande Outro, Outro com O maiúsculo. Em sua relação A a, ou seja, Autre moi. Local donde advém a subjetividade do sujeito. Recinto onde se acumula o conjunto de dizeres que forma o sujeito. "Feio", por exemplo, quando a garota que eu gostava me disse isso e isso me fez passar a ser feio, a viver como feio, a me sentir como um feio, a ter uma imagem de mim mesmo como feio. Um discurso sobre mim que me (in)forma quem sou.

     Pequeno a, 'eu', moi, minha experiência egoica, meu 'eu' que eu reconheço como 'eu', que "eu me chamo". O 'eu' que 'eu' tenho acesso. E moi é afetado diretamente pelo vetor do Autre, ou seja, por sua linguagem, sua palavra, seu discurso, seus dizeres, pelo que Autre diz de moi.

     Ao mesmo tempo, o pequeno outro, a' (autre), são as outras pessoas: materiais, físicas, empíricas, existentes, reais, ao redor de moi. O que eles dizem de moi também o afetam diretamente. Percebe a seta de a'  a? É isso. Mas afeta moi naquilo que moi reconheço como moi, na imagem que faz e carrega de si mesmo. Afeta moi no Eixo imaginário (Axe imaginaire), é exatamente o eixo de fundamentação do sujeito, que vem da infância, da mente sem fronteiras, sem limites, sem barreiras, capaz de fabular, de imaginar (criativamente).

     Concomitantemente, o grande Outro, Autre, A, tenta atingir moi no Es, no Id freudiano, na 'coisa' que moi realmente é, seu 'eu inconsciente' que nem moi acessa. Porém, ele é parcialmente barrado pelas coisas que os pequenos outros, a', dizem dele e lhe formam a imagem de si mesmo. Assim, o discurso do grande Outro, A, tem que passar para o Eixo simbólico para atingir moi no seu Sujeito, S maiúsculo, no seu Es, seu Id, no que ele realmente é além ou aquém de qualquer imagem que faz ou que façam dele.

     E isso se reflete no que o Sujeito, S, o Es, o Id, vê, através do Eixo simbólico, dos pequenos outros, os a', das pessoas reais, de carne e osso, que o cercam.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Trecho de "La Recuperación del Objeto" (de Joaquin Torres Garcia; grifos do original)

Los objetos todos, con las más variadas formas particulares, ni por azar jamás armonizarán entre sí. Pues bien, para lograr eso – los artistas que se han preocupado, que son muy pocos – han empleado diversas técnicas: colocarlos dentro de un orden, sea la medida armónica u otro; deformarlos, para que entraran en un ritmo; esquematizarlos geométricamente, etc.
En aquella escultura arcaica-griega, no falta jamás aquella preocupación rítmica ortogonal; y en esto puede verse, hasta más que en la forma, el sentido de lo estético que poseían.

(...)

Al intentar, pues, la recuperación del objeto (es decir, su representación objetiva normal) he visto tal dificuldad, si es que no se le deformaba o se ponía en un orden geométrico. Debía reducírsele a forma estética, inmaterial (despojarlo de sus cualidades intrínsecas a fin de que, por su homogeneidad con los demás, pudiese armonizar en un conjunto); y por esto, más que un objeto material (real), debía de contemplarse la idea de un objeto. Como se comprenderá, esto no podía lograrse intelectualmente; es decir, sin sentir el objeto, sin entrar en su alma: trabajo, por esto, de creación del artista. Quiere decir, recogido todo sentido de naturaleza y toda la forma íntegra del mismo; en una palabra: humanizado.

Como puede verse, tal propósito es bien distinto de aquél del cubista, que desarticulaba el objeto para juntar sus fragmentos a otros objetos o creaba formas monstruosas, penosas a la vista. Aquí, por el contrario, se quiere que el objeto no sólo perdure a través de la deformación, sino que de cualquier modo conserve íntegra su esencia. Es decir, que el objeto, íntegro y verdadero, no deja ni un momento de preocupar el artista.

Pero, aunque el objeto tuviera que perecer en honor de lo estético: el ritmo y la estructura, sería lícito hacerlo. Y hacer a la inversa, o sacrificar esto último a la objetividad del objeto, sería negar al arte en su sentido más profundo. No hay pues que oír la voz del vulgo, que quisiera que se hiciese tal cosa.

Si los griegos partían del sentimiento y del alma, está bien claro que poseían también el sentido estético más profundo; podría decirse un sentido innato, proprio de aquella raza mediterránea; cosa que nunca podremos ver en las razas bárbaras. Con todo, tal sentido estético, no se fijó sino tras una evolución de algunos siglos. Existió en Grecia, antes de su unificación, un arte naturalista, muy tosco, el cual, sin perder ese sentido, se convierte, en el período cretense y micénico (en la edad de bronce) en un naturalismo ornamental, a base de motivos florales en arabescos formados por curvas entrelazadas. Dorios y Jonios, en la Edad de Hierro, unifican la cultura griega, la Hélade, propriamente dicha. Pero, un siglo más tarde, el Atica se impone definitivamente. Tal fundamentación de Grecia, fue obra de los Jonios, que extendieron su admirable cultura a lo largo del Mediterráneo.

El naturalismo de Creta, desde el período neolítico (unos 300 años antes de Cristo), tiene su punto álgibo en 1700 A.C., en Micenas; de manera que el sentido de lo abstracto podría fijarse entre los siglos VI y VII antes de Cristo.

Cuando se comienza a estudiar de cerca los grandes centros de cultura, sean del lugar que sean, y de la época que fueren, se ve lo peligroso que es generalizar y formular teorías. Parece que en diciendo "Grecia" o "Arcadia", "la serenidad griega", "el equilibrio griego", etc., ya está dicho todo. Paso a paso; entre mucha escoria habrá algunos gramos de metal precioso, y es todo. A veces, toda una gran cultura ha podido existir porque existieron sólo unos cuantos hombres de gran inteligencia y visión penetrante; el resto sólo ayudó; y fue todo.

domingo, 20 de novembro de 2016

Língua é (também) espaço

As relações entre língua e tempo são bem conhecidas – leva-se tempo para ler um livro, não se pode apreendê-lo em sua totalidade num só instante, de uma só tomada, como seria o caso com um quadro ou uma fotografia. Assim, a língua se desdobra no tempo, tanto quanto a música e a encenação. Essa maneira de pensar é antiga e remonta ao famoso texto sobre Laocoonte, de Lessing. Haveria, segundo o texto, artes temporais e artes espaciais, oposição famosa perdurando até hoje, como descrevi acima. Todavia, não parece frutífero operar com essa divisão, uma vez sabido tempo e espaço intimamente relacionados.

Se a associação da língua com o tempo é famosa, antiga e óbvia, talvez não tanto o seja sua relação com o espaço. Óbvia talvez não, mas há muito está debaixo de nossos narizes: "arqueologia textual", "filologia", e o exemplo mais paradigmático (com toda a redundância dessa expressão), a "arqueologia bíblica" – lembremos: biblos é 'livro' em grego.

Leiamos um bom Machado com seus 'êlle' e 'pharmacia', logo sentiremos a poeira acumulada sobre as páginas – exatamente a poeira, esse ente peculiar capaz de ligar espaço e tempo. O texto logo se torna um sítio arqueológico rico em fósseis, em antepassados, em ancestrais muito similares a nós – rico, portanto, em origens. A língua: um sítio arqueológico – ponto mais fulcral. Acumulam-se sobre as palavras camadas e camadas de sentidos, de ditos, de lugares(-comuns), e é preciso escavar essas sedimentações para se chegar minimamente a algo.

Assim, não discordamos de Lessing, ainda que discordemos: tanto quanto um quadro deve ser demoradamente contemplado, o que uma língua desenvolve no tempo é um espaço, seu espaço – aquilo que fala abre um espaço. Posto o espaço espaça, espacializa, da mesma forma a língua espaça, espacializa. Quer dizer, qualquer proposição sobre o espaço fala a partir de um espaço, dentro de um espaço, ademais de qualquer aparência de estar fora do espaço.

Espaço, portanto, deve ser pensado como abrir espaço, garantir espaço, espaçar, espacializar. Espaço não é propriamente um objeto, nem um ser dentre outros seres. Espaço é a oportunidade para tudo que é. Se alguém só pode dizer de um ser que ele é, então espaço não pode ser. Daí todas as controvérsias, desde Platão ou antes, sobre a 'realidade' do espaço e do mundo "de fora". O espaço reside por e ao seu próprio lado, diferenciando-se de si mesmo, próximo de si mesmo. O espaço, assim, não é divisível, não consiste de partes e não é ele mesmo parte de um todo maior – o espaço não tem fronteiras ou bordas para isolá-lo de outro espaço ou do não-espaço. Espaço não é extensão, senão tensão, tensões, alongamentos, prolongamentos, separações, realce, acento (diérese, sinérese, trema, hiato, circunflexo, agudo, síncope etc.).

Não sendo o espaço diviso, dividido, não pode haver 'contínuo' espacial, somente um 'contíguo' espacial; só pode haver uma contiguidade, não uma continuidade – não é a metáfora a nos guiar o pensamento, portanto, mas a metonímia.

Quem tem livros conhece bem a dimensão espacial desses (trans)portadores de língua. Se a língua não permeia profundamente o social, é impossível conceber o sentido como social, pois haveria uma infinita distância entre a língua e o sentido; sabemos bem que esse não é o caso, o processo de semiose é tão social quanto é semiótico o social.


texto coautorado por Igor S. Livramento e Lu Bouhid

Gravidade do Exílio

     Você parte para o quinto círculo de exílio, onde a gravidade aprendeu a lidar consigo mesma. O nome já não te puxa mais para baixo. Você derrama o passado; você o esculpe com sua pele e flutua infinitamente, encantado pelo tempo leve. Gravidade é um jeito de ser, reflexo da visão de alguém doente. Cativante é a sensação de não mais estar preso ao chão. O vento te transporta acima das terras onde a história dorme escutando seus próprios mitos. Seu corpo submerge num estado de euforia. O núcleo da perfeição: onde o coração não ama um, senão todos; onde tudo é uma terra estrangeira sob seus pés; onde você pertence a todos os lugares e a nenhum.


     Contentamento além do querer. Você cresce dentro do seu mundo, não mais um andarilho. Você abraça o momento pelo momento apenas por um momento. Você possui o outro pelo outro, não por si mesmo. Ama a si a partir de si, não do outro. A língua se manifesta a si mesma como instrumento para a sua alma tocar corações aonde quer que vá. As contradições de si tornam-se muitas notas soando em harmonia. Não mais o sonho; o sonho se tornou você. Você deixa ir. Deixa. A mente em paz com seus fragmentos, não mais uma parede sufocando seus tecidos. Não mais fronteiras cortando o corpo em metades diferentes. Separação de um e de todos. Exílio torna-se uma escolha, não um fardo.



texto de Assad Abdi, traduzido por Igor S. Livramento

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

(Elogio?) Da com-paixão

     Compaixão, que palavra! O dicionário me diz que se divide 'com.pai.xão' e que é um substantivo feminino, além disso trata-se de:
  1. Piedade; sentimento de pesar, de tristeza causado pela tragédia alheia e que desperta a vontade de ajudar o próximo, de confortar quem padece de algum mal: papa pede compaixão pelos pobres.
  2. Dó; sentimento de pena: sentia compaixão pelos pobres.

     Ainda me diz que a etimologia é latina: compassio, compassionis. Muito bem. Mas o que quer dizer, afinal? Ora, é óbvio: só pode haver compaixão com paixão! Afinal é com passionis, portanto trata-se dum afeto. Isso nos traz à dimensão terrível do fato: a compaixão é feia, fundamentalmente feia. Não se trata de uma virtude, de um sentimento nobre, elevado, concordante à frieza racionalista, ao indivíduo – vejamos: ela é um afeto, uma afetação, é a incapacidade de separar 'eu' e 'tu', é a indistinção das fronteiras, é o unbound, aquilo que está without boundaries, sem limites, fronteiras, barreiras, divisas, é o indiviso entre 'eu' e 'tu', entre 'eu' e 'outro' (Outro?), daí ser uma afetação, é a incapacidade do sujeito de se aperceber do espaço separatista, de se perceber como a si sozinho, como a si mesmo unicamente.
     Compaixão é agir com paixão, com um desvio de caráter ante a retidão – indício do bom caminho não ser sempre o caminho reto, nem sempre o bom caminho é aquele mais curto entre dois pontos. Assim, estar apaixonado é estar com paixão, tanto quanto para se ter compaixão é preciso estar apaixonado. Entretanto se, como queriam os gregos antigos, a paixão é um excesso, como lidar? Vejamos, mais uma vez, que nos diz o dicionário: 'ex.ces.so', substantivo masculino:
  1. Aquilo que está a mais; quantidade que excede os limites comuns e ordinários de alguma coisa: excesso de indulgência.
  2. Aquilo que excede às normas; o que está a mais dentro de uma escala pré-estabelecida de normalidade, de legalidade etc.: excesso de calorias.
  3. Comportamento desmedido ou desregrado: não precisava falar daquele jeito, aquilo foi um excesso seu.
  4. O que é redundante; em que há redundância.
  5. Abuso: excesso de comida.
  6. Aquilo que resta; o que é remanescente.
  7. Esforço intenso: excesso de dedicação.
  8. Grau extraordinário: excesso de consideração.
     É sintomático, ou no mínimo curioso, que o primeiro significado traga o termo indulgência, precisamente a misericórdia, a facilidade em perdoar que se associa primeiramente ao termo compaixão. Não há nada de mal ou errado nisso, em verdade é muito apropriado perante os fatos. Afinal, quem está apaixonado perdoa mais facilmente.
     Curiosamente, estar apaixonado, ter paixão, é também um abuso, como nos avisa o dicionário. Mas um abuso de quê?! É óbvio que o apaixonado é abusado, abusa-se dele, daí a indulgência e o perdão – mas "um dia o perdão também se cansa de perdoar", como cantaria um de nossos maiores poetas e letristas. Daí a compaixão ser um esforço intenso, como também nos disse o dicionário, um esforço intenso de misericórdia, de clemência e num esforço tão intenso, o sujeito com paixão é aquilo que resta, é só um remanescente, um resto de gente, já não sabe mais distinguir 'eu' e 'tu', sofre com as mazelas alheias, não sabe – oh! pobre dele! – separar sua vida das outras vidas.
     Sim, ter compaixão, estar apaixonado, é um comportamento desregrado, excede às normas, normas que já mencionamos, do 'eu', do indivíduo, in-divíduo, indiviso, aquele que não tem divisões, mas somos mesmo assim tão íntegros, tão inteiros? Por mais que pareçam unidos, há claros sinais de pontos de uniões nos dedos, pulsos etc., muito mais que integridade, há montagem. A montagem do 'eu' com o 'tu' não pode ser boa? É preciso voltar no in-divíduo do passional, onde as fronteiras já se esvaem, fracas, frágeis, indelimitáveis, indefiníveis – sensíveis, sim, porém movediças, permeáveis.
     De fato, excede-se às normas com paixão, pois as normas foram estabelecidas sobre o virtuoso, que não possui paixões, só comedimentos, só vir-tudes, atitudes de vir, 'vir' do latim vir, viri, varão, homem, quer dizer, aquele sujeito que possui "atitudes de homem". Ora, vejam só! Quer dizer que o desvirtuado é o " desprovido de atitudes de homem"? Que mundo, não?! Bem sabemos, contudo, o virtuose é o homem de virtude, é o virtuoso, e ele é excelente, mas apenas num ponto, é excelente somente numa especialidade, mais limitado que o próprio limite, limitante mesmo.
     Se ter compaixão é estar apaixonado, é ser excessivo, estar em excesso, portanto em exceção, é também ser desvirtuado, desviado do caminho reto, do caminho mais curto entre dois pontos, diríamos: olhos que choram enxergam melhor.

domingo, 27 de março de 2016

Novo aforismo sobre a situação atual

            Percebi no almoço de hoje, quando minha tia começou a discorrer sobre a situação atual, que vivemos uma crise ética, atrelada à crise político-econômica: "Porque eu acho que a televisão não deveria... Porque eu acho que... Porque eu acho... Eu acho...".
            “Eu acho” – é uma crise de ética, há éticas, isto é, modos-de-vida, formas-de-viver imbricando-se, enfrentando-se, em conflito, concorrendo pela hegemonia, pelo espaço dominante, pelo acordo tácito que guia o cotidiano, que (co)ordena a vida da mais vulgar à mais elevada – e aqui cabe um parêntese das esferas altíssimas de poder e dinheiro, as quais se evadem de qualquer moral por uma ética fluida: de um lado líderes do povo, do outro corruptos e corruptores. E aqui se pode ler a essas éticas em disputa como a pilhagem em busca da hegemonia, a corrida pelo topo – para usar termos de uns pensadores muito bons, é a crise das ideologias.
            Há um quê de primitivismo, mas um primitivismo anacrônico, não pejorativo, algo que tem seu valor, ainda que não em polos urbanos, todavia ainda não houve contato suficiente para que o espírito da urbe absorvesse essas índoles adversas a si. Os valores de hipercompetitividade, de individualismo pleno, de defesa agressiva do que é seu, são valores primevos. Eles remetem à escassez de recursos: é você, seu tacape (seu revólver), seu clã (sua família e amigos próximos) e fora da sua caverna (sua quebrada), todos querem ou sua caça e coleta (seu emprego) ou suas coisas (bens e posses), e esses outros estão dispostos a matar por isso – então se torna uma corrida onde você tem de matar ou se aliar aos mais fortes para garantir sua parte.

            Entre a favela e a caverna não há muita diferença... Paras esferas mais altas percebo uma sensação desesperada, uma desilusão em curso, algo como uma angústia ansiosa, acelerada, quase eufórica, praticamente burocrática: “não há como alimentar todos com salmão e caviar, fazer isso custará o meu salmão e caviar”.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Preto-e-branco-e-colorido

          Ela encara o vento no topo do prédio. Seu rosto é sério e sisudo. Sua expressão não é dócil; convidativa talvez. Não pode sorrir; apenas encara. Pisca de vez em quando (o vento pode fazer os olhos arderem).
          Cabe num vestido azul e, com a destra – que pende paralela ao corpo – segura uma pequena flor branca desimportante. Tudo atrás dela – tudo diante dela – é difuso, impreciso, embaçado, desfocado. Reto e penetrante: seu olhar.
            Eu estou preto-e-branco.
            Tudo nela e ao seu redor é colorido.
         Ela dá a bochecha ao vento; olha para o lado. Olha para baixo e perde o olhar num detalhe ínfimo do chão – perde-o nas parcas nuvens acima. Mexe-se, sente o vento, envolvendo-a, dançar. Sorri com os lábios (os dentes permanecem escondidos). Então para, quer ofegar, mas não está suficientemente cansada. Mira a cidade abaixo; o horizonte. A destra se abre.
            A flor cai.
            Tudo é cinza.
         Chora profusamente, seu rosto se compõe de duas cachoeiras. A garganta é vulcão. Quer gritar e explodir; só engasga.
            Eu estou preto-e-branco. Ela também.

            Ela também.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Abençoadas as abelhas

            Ouça-me bem. Ouça o que tenho a dizer. Repetições dolorosas vêm e vão – sempre e de novo. Repetições dolorosas vêm e vão. E vão.
            – Então sou humano, agora?! – gritei a plenos pulmões, satisfeito.
            – Então sou escudo humano, agora?! – gritei a plenos pulmões, insatisfeito.
            A mais fina engenharia, que nós vimos e conhecemos; a mais finda engenharia, que nunca nos deixa – nunca nos deixará. E é por isso que jantamos no teu projeto.
            Eu gosto do teu aspecto, do teu semblante: é agridocre e dura seis horas.

            Sozinho por um dia e seis horas.