domingo, 25 de fevereiro de 2024

Uma questão de atração aos grandes nomes

A cortina queima o vidro,
a janela chateia-se.
Meia-noite.
Fora, os vermes ao luar.
Soa uma hora.
O amor dependurado numa árvore
como subindo escada.
A hora estanca.

Intriga-me a gravitação exercida pelos grandes nomes (notadamente sobre os acadêmicos). Inclinação infeliz, pois os cega para todas as sombras que têm diante dos olhos fartos de tanta luz. Essa é mesmo a distopia capitalista contemporânea: tudo banhado a fosforescência 24h, nenhuma treva. A atenção às sombras é a própria crítica (é dizer, o contrário da ingenuidade): descobrir quanto não se enxerga naquilo que se vê.

Mas como treinar a vista cansada para ver mais precisamente aquilo que não se vê? Quiçá começar pela característica: não se vê não por invisibilidade, mas por tornar-se acostumado à visão de tanto se ver. Reeducar os sentidos, a sensibilidade.

Estejamos alertas, portanto, ao cansaço e ao costume da sensibilidade. Admitamos, portanto, que a semiose interminável que nos cerca também nos cansa.

A sensibilidade, para permanecer sensível, terá de permanecer atenta sem cansaço, o que parece impossível, pois toda vigília demanda o sono para seu reparo.

Aí está uma das soluções do problema: dormir e sonhar. Se dormirmos (e sonharmos), regeneraremos a fina membrana da sensibilidade, esse delicado órgão imaterial com que medimos o mundo e a nós mesmos, nossa cartografia interior.

Será tarefa fácil estabelecer novos conceitos e categorias nas ocasiões adequadas quando a sensibilidade estiver revigorada, pois também incide sobre a percepção do momento oportuno.

Relaciona-se, portanto, com os ritmos internos e externos, é dizer, com o tempo. Propicia a inserção do sujeito no fluxo dos acontecimentos e estimula sua criatividade nas maneiras de barrá-lo, como cortá-lo ou suspendê-lo, mesmo que apenas durante um gesto ou um instante.

A sensibilidade exausta com que vivemos não precisa tanto de olhos, de vistas, perspectivas, mas de danças, texturas, arquiteturas — toque.

Referir-se, portanto, ao tato de alguém (“ele tem tato”) como sua capacidade de agir e reagir adequadamente a um ambiente emocional concreto [inglês mood] quão háptico e quão natural, é dizer, quão orgânico, quão instintual, da ordem dos órgãos psíquicos, capacidades invisíveis, deve ser esse feito.

Falta tocar — e tocar-se — àquele que circunda apenas os grandes nomes (e vê os pequenos nomes como meros comentaristas, seguidores, adeptos, cultistas, etc. dos grandes nomes). Falta-lhe essa relação quase animal (instintual) com a matéria em questão — o pensamento.

Pensar requer ver, sim, é claro, a própria ideia de ideia1 deriva-se daí, as perspectivas — pontos (geometria) de vista —; porém, depende igualmente da matéria, da maneira, da mão, do toque, do tato: tocar e ser tocado, reciprocidade que, pace Didi-Huberman, não sofre correspondente na visão.

Ainda que hoje, sim, sejamos até mais vistos do que vemos (câmeras de segurança, live streams, reconhecimentos fotográficos, etc.), no contato podemos exercer força sobre o objeto assim como o objeto pode exercê-la em (ou contra) nós.

O contato corrobora a existência do corpo e permite operar e decidir desde o critério do impacto.

O reino das imagens sob o qual padecemos ruma ao desaparecimento do corpo. Ama a abstração como salvação, promovendo as fantasias de upload da consciência, como se o animal sensível pudesse se reduzir ao raciocínio calculativo-representacional.

O império imagético se engana e nos engana ao querer reter a vida na imagem, ignorando que a vida só se delimita em imagens quando cede seu espaço ao trabalho da morte2.


  1. Provavelmente partindo do proto-indo-europeu *wéydos (“ver, imagem”), de *weyd- (“ver”), cognato do sânscrito वेदस् [vêdas] (“conhecimento, ciência; riqueza, propriedade”).

  2. As imāginēs (“semelhanças, aparências” — de imāgō, “imagem, imitação, estátua, representação” como também “fantasma, aparição”) dos mortos retidas em suas máscaras mortuárias, como a máscara dourada com o rosto de Tutancâmon ou a máscara de bronze com a face de Napoleão.

Das Kino

O cinema é feito

para aguardar violência.

Para si, o ato é uma ressonância

desviada.


Há apenas Cinema;

quase nenhum filme.


A técnica e a ciência

são-lhe intrínsecas.

O cinema dá conta

— do valor —

e aumenta seu poder

(de decisão).


O verbo, no cinema,

é visível e audível

(em direção à explosão).

É aqui que entra

a palavra

escrita.

Já que o cinema é escrita

e leitura

(e apagamento).


O cinema alcança

e avança

a História

que dissimula seu atraso.


A história desvia-se

da história

com um "s".

(História(s).)


A multiplicação de histórias pode

aproximar a História,

mas perde o Cinema.

O cinema precisa perder a si próprio?

Pode ser.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Anotações esparsas de um projeto de história da arte moderna tomando-se o cinema como eixo organizador

Tenho pensado que talvez o cinema seja o grande eixo a partir do qual contar a história da arte moderna e contemporânea. Claro, considerando-se como arte moderna a arte que se inicia próximo ao modernismo, quiçá com o realismo, com os usos da fotografia e as primeiras gravações sonoras em diante.

Coincidentemente, a máquina de escrever também surge nesse período, facilitando a produção de roteiros e de literatura, libertando a mão do escritor em relação ao texto, quer dizer, autonomizando o texto, tornando-o impessoal, passível, finalmente, de crítica objetiva.

A crítica objetiva faz parte da arte cinematográfica tanto quanto da arte literária, é dizer, o cinema pode ser bem feito ou mal feito, mas não pode deixar sem reação, sem resposta, sem comentário. O cinema, afinal, também já incorporou a crítica ao seu circuito de funcionamento.

Mas por que o cinema como eixo da modernidade artística?

Bem, porque o cinema teve sua infância, sua adolescência e sua maturidade, viveu todas as eras, as fases, as épocas da criação artística.

Sei que o modelo padrão da história da arte centra essa história na evolução das artes plásticas, desde o perfeccionismo do século XIX até o conceitualismo dos anos 1970, com uma teleologia da progressão sistemática da pintura figurativa à pintura abstrata, passando dos impressionistas aos cubistas à abstração completa.

Não quero contar essa história, uma história datada, fajuta, teleológica.

O cinema como eixo organizador da história da arte moderna envolve se engajar com a criação de arte como um processo modernizador. O próprio ato de fazer filmes como um ato moderno. Pois o filme compartilha com a poesia o poder do corte, com o teatro a atuação, com aquele e a literatura a narrativa, com a música o tempo, com a fotografia e as artes plásticas a visibilidade e até o uso da arquitetura. E é uma arte da presentificação dos ausentes: vemos atores mortos nas telas, mas eles estão vivos nos filmes, há uma dobradura do tempo muito peculiar, raramente encontrada, pois não se trata de personagens ficcionais ou das palavras de alguém em uma carta, mas da própria imagem corporal desse ser, sua colocação em cena, mas essa colocação só pode ocorrer através da atuação, do ceder sua existência ao personagem, é dizer, ao não ser a si mesmo.

Não ser a si mesmo é talvez o único jeito de se tornar imortal.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Sobre algumas questões literárias e da escrita criativa

[L]o que está en juego en el trabajo literario (en la literatura como trabajo) es hacer del lector no ya un consumidor, sino un productor del texto.

Roland Barthes. 1. La evaluación. In: S/Z. Trad.: Nicolás Rosa. Ed. rev. y corr. México: Siglo ⅩⅪ, 2011. (Teoría.)

Uma das questões que mais me tem convocado sobre o estado atual da literatura é a falta de ênfase nas transformações e mudanças. Tanto os escritores contemporâneos quanto os acadêmicos parecem ter perdido o tato para a natureza dinâmica da narrativa literária. A experiência leitora ensina que personagens não são estátuas, estados de coisas paralisados, senão movimento, passagem, transição de estados de espírito, modificação de crenças, alteração de interações.