terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Vivendo Insana Libido

            Sei que prometi a muitos amigos que comporia logo, mas tenho perdido o interesse na escrita devido às muitas leituras que propus a mim mesmo durante estas abençoadas e bem amadas férias. Por concluí-las me vejo sem tempo – e sem aquele ardor – da continuada produção literária. Cá, porém, temos o fruto de uma passada de roupa ouvindo música. Fruto parcial, talvez inteiro, inacabado, de toda forma, um rascunho do que um dia virá a ser este enredo intitulado Vivendo Insana Libido (ou como bem observou um grande amigo: “que bela sigla forma o título, não?”). Vamos à narrativa.

Vivendo Insana Libido

            Arturo é o nome daquele moço ali. Cabelos castanhos bagunçados, camisa de botões branca, desabotoada nos dois primeiros, exibindo a corrente dourada, honrosamente pendurada no pescoço, com o sobrenome gravado em letras grandes. No pulso direito vive o relógio de ouro branco, pontualmente marcado com cinco de atraso, para que seu dono sempre seja o primeiro, afinal, sente-se como o primeiro. Pele mais clara que as moças com quem fala, é tido em boa conta por todos, é o que parece a quem olha. Tem o corpo levemente definido, não é o maior fã de esportes ou musculação, prefere viver à própria maneira, apreciando um bom charuto, como faz agora, ou bebendo um uísque bem forte, com pouco gelo.
            Encostado em seu Corvette azul escuro, sente-se orgulhoso do dinheiro. Orgulhoso de si mesmo, como um campeão deve se sentir, pensa, afinal, foi campeão nos negócios. Estão, ele e as moças, conversando na frente do Larry’s House, uma discoteca muito boa, devo dizer. Muito famosa por sua música de ponta, sempre atual, além das batatas fritas com queijo derretido aos dançarinos esfomeados. A quem prefere os corredores que levam aos banheiros, a melhor cocaína está lá, pronta para ser comprada e cheirada. Tudo isso – é claro – só acontece à noite, porque é à noite que tudo acontece.
            Jogando seu charuto ao chão e pisando-o, Arturo finaliza a conversa com as bonitas morenas e se vai, guiando seu carrão por aí, apreciando o ronco e a potência, a velocidade e o vento no rosto, fresca brisa noturna de verão. Não longe do Larry’s, no caminho de Arturo, há um circo. Nesse circo uma moça muito formosa conta seu dinheiro. Quantas vezes já contara? Finalmente algum dinheiro! – comemorava. Arturo também contava seu dinheiro muitas vezes, não agora, sobretudo porque dirigia e ouvia mais um hit no seu toca-fitas, pisando forte para acelerar mais e mais, contrabaixo e motor misturados num só ritmo.
            Maria é a esbelta circense do dinheiro. A frágil dama protegida pelo domador, a equilibrista magnífica da corda bamba, a bailarina impetuosa e destemida. Quando começara lá? Já não lembrava. Desde que se lembra, a infância era um borrão, uma névoa só onde não se pode ver nem os próprios pés. Não se importava em saber, o circo poderia ser melhor que pareceria a muitos. Apesar do dinheiro quase sempre baixo, eram todos muito alegres e respeitosos, ninguém parecia maior que ninguém, exceto pela estatura fisiológica. É claro que sonhava dançar sob as luzes do teatro, ouvir as mil palmas, ser toda ela críticas artísticas em jornais famosos, sentir o perfume do marido na mansão e correr a beijá-lo, devolver-lhe o dinheiro investido nas apresentações com seu carinho e seu corpo sensual. Ela sabia bem, era caliente, era ardente, era mulher de verdade. Pois estavam contados os trocados e os sonhos postos na carteira. Decidida estava: badalaria em alguma boa discoteca, para sair um pouco do padrão, dançar algo diferente, beber algo bem forte e se divertir muito. Mesmo o trabalho divertido se torna estressante depois de algum tempo.
            É noite de segunda-feira, ainda são oito e meia, já se veem pernas entrando no Larry’s House, sedentas pelo ritmo e pelo groove, louquinhas para dançar até suarem toda a água de seus corpos. Pernas torneadas e acostumadas à dança entram também cedo, são as pernas de Maria. Não dançou assim que entrou, nem se deveria, seria ruim, estava faminta e beber de barriga vazia nunca foi boa ideia. Sentou-se numa das mesas do segundo andar, após subir as escadas aveludadas, e pediu as lendárias batatas, além de uma cerveja irlandesa. Pediu para beber no gargalo da garrafa mesmo, lera em algum jornal que agora as garrafas eram esterilizadas antes do reciclo, por isso não temia matar a sede e o desejo num só gole.
            Não comeu tudo sozinha, seria um desastre, sentir-se-ia pesada demais para dançar, talvez enjoasse. Henrique, loiro, olhos verdes, corpo bastante forte, não definido, responsável pelo transporte e montagem do circo a acompanhava. Secretamente – portanto ela não sabia – ele lha tinha tão forte afeto que a poderia beijar a qualquer momento, mas, lembremos, secretamente. Na superfície, apenas um cara jovem, forte, bom de piadas e tiradas, conversador e leitor de romances nas horas vagas, todos comprados usados ou doados, é claro.
            Enquanto Henrique apreciava sua cerveja, não irlandesa, mas mexicana, ela lhe disse, com licença, preciso ir, quero muito dançar e sabe que adoro sua companhia, mas um espírito livre precisa voar, ao que ele sorriu e consentiu com a cabeça, pensou consigo, que mal havia? e a deixou partir à pista de dança, não cheia – jamais uma discoteca encheria, não era do feitio das discotecas se deixar encher, mesmo por causa dos corredores que levavam aos banheiros – e ficou sentado, bebendo devagar e sentindo o corpo se guiar pelo coral feminino que dominava as vozes da canção, sentindo os breves ataques dos sopros metálicos acentuarem as sílabas tônicas das palavras da letra.
            Ah! Como era bom vê-la dançar fora das sapatilhas! Como era leve e desenvolto seu corpo, seus movimentos eram quase líquidos. Deliciava-o só vê-la dançar, mesmo que sonhasse em estar ali, ao lado dela, sentindo o amor enchendo seus pulmões e olhos e mãos e sentidos todos. Agora já eram dez e meia e ela voltou à mesa, com outra cerveja irlandesa, igual à primeira, exceto que era outra, porque estava cheia. Ofegando se sentou e sorriu, retirando da bolsa um pequeno pano com o qual secou a testa e o pescoço. Henrique apressou-se em abrir a tampa da cerveja com as próprias mãos, fazendo, em seguida, uma caricata pose de fisiculturista, a que Maria riu e tomou das mãos dele a garrafa. Lembrou-se ela, então, que desejara, na noite anterior, beber algo mais forte, mas como já iniciara nas cervejas, ficaria com elas até o fim. Boas irlandesas, disse, humanizando as cervejas e fazendo Henrique quase se babar, de tanto rir. Olhou, ela, para longe e viu um homem de cabelo castanho claro e bagunçado, muito bonito e ousado, bebendo uísque, fumando um cigarro branco e apenas acertando a ponta do sapato contra o chão no ritmo. Sentiu enorme vontade de falar com ele. E foi. Henrique se sentiu tomado de ciúme; reprimiu-se, contudo, não se relacionavam além da amizade, nada lhe cabia fazer.
            Olá. Você gostaria de dançar? Arturo a olhou da cabeça aos pés e de volta àqueles olhos negros como o abismo, ergueu o copo, como uma desculpa, ao que ela pegou e bebeu todo o restante de uísque num só gole, ainda que fizesse uma careta antes de devolvê-lo, vazio, às mãos macias do rico. Bem, se não te resta bebida, vamos dançar? Deixou o cigarro sobre o cinzeiro, esquecendo-se dele e beijo-a a mão. Quem seria a rainha que pede a Arturo, seu rei, que com ela dance? Maria, disse ela, corando e sorrindo, recuando a mão de volta e já lhe dando as costas, para retomar o ritmo e dançar. Pensou consigo como foi fácil beber algo mais forte, bastaria se livrar dele durante a dança e, se nada funcionasse, Henrique a protegeria, como não raras vezes já fez. Arturo, porém, lha agarrou pela cintura com mãos firmes e dançaram muito.
            Trocaram palavras demais para descrever. Conversaram tanto, sequer puderam dançar seus melhores movimentos um ao outro. Puderam apreciar as vozes, contudo, e como se apreciaram um ao outro! Conversaram tanto que Maria saiu de mãos dadas com Arturo, por uma porta aos fundos, após ver a pequena pilha de dinheiro que Arturo deixou, para pagar algumas contas. Seu Corvette azul marinho era tentador demais para não sentar e arrepiar com o enorme e barulhento motor. Estava ela apaixonada ou embriagada de paixão? Não sabia dizer, só conseguia rir de alegria e contentamento. Finalmente uma saída, um homem rico e encantador, um homem de verdade, cheirando a dinheiro e charuto. Esvoaçava os cabelos com o rosto posto para fora da janela, sentindo a noite preenchê-la toda. O vento secando os olhos e a garganta, mais que a cerveja, mais que o gelo seco da boate.
            Acordou na terça-feira muito cansada e com alguma dor de cabeça, não muita. Sabia que se lambuzara a noite toda com Arturo e ele já não estava mais ali, naquele motel fajuto, apenas seu recado em papel, manuscrito, dizendo está tudo pago, incluso almoço, não me procure, sei onde te achar; estaremos juntos de novo quando possível. Promessa. Ela sorriu e apertou o papel contra seu peito, podia sentir o perfume dele ali. Sabia, assim, que ele passava perfume nos pulsos também e isso era muito chique e o tornava ainda mais atraente, apesar do cheiro de cigarro e do sabor de uísque em sua língua.
            Henrique estava morrendo de raiva, de ciúme, de algo quente e intenso, algo fervente, algo vulcânico dentro de si mesmo quando Maria chegou. Não conseguiu ler o dia inteiro, seu peito apertava, era difícil respirar, tentou muito, sem resultado, seus pulmões pareciam cheios de uma névoa negra, sombria, densa, profunda demais para ser cortada ou afastada com razão e lógica. Ah! A dor humana! O sofrimento não é mesmo lindo? Tanta intensidade!
            Maria saiu várias vezes com Arturo, enquanto Henrique remoia-se, afastando-se dela mais e mais, esfriando em seu coração a chama que por ela, antes, queimava viva. Maria, lentamente, todavia, percebera que seu amado saía com outras. Que poderia fazer? Já não era tão jovem quanto antes e nem era tão ruim assim, ele sempre voltava, como prometido naquele pequeno bilhete que ela ainda guardava. Não é tão ruim, pensava consigo, enquanto descia um generoso gole de água fresca pela garganta, sentada detrás das cortinas, após longa dança. Muitos aplausos a coroavam, algumas vozes ainda a elogiavam, a chamavam linda, maravilhosa, delícia, mas que representavam essas vozes? Seriam outros, amando outras fora do espetáculo, que ali tornavam sua atenção a ela? Perguntava-se se o mundo estaria cheio de outros como Arturo... Até que avistou Henrique, correndo de um lado para o outro e sorriu aliviada. Alguém no mundo ainda lia romances, isso atenuava seu quieto e mudo sofrimento.
            Mais dia, menos dia, Arturo, vendo o sucesso do circo, quis se aproximar dos membros e se apresentar como pretendente, futuro marido de Maria. Não foi a mais feliz das escolhas, todos o conheciam antes de Maria e já o sabiam cruel amante de muitas. O fatídico momento encontrou sua concretização quando, em uma severa discussão com Henrique, após este quase bater o Corvette azul num estacionamento, Maria ouviu a verdade mais dolorosa: Arturo era cafetão. Comprava suas mulheres como a comprara. Motéis, carros, bebidas, cigarros, roupas, sapatos, a promessa de um futuro brilhante e a pretensa visão dos talentos de cada um. Mentiras. Não! Pensou ela, confusa. Mentira! Estão tentando tirá-lo de mim! Isso tudo é mentira! Gritava ela, caída sobre os próprios joelhos, na areia do estacionamento, com as mãos na cabeça, apertando forte, chorando, a maquiagem escorrendo como tinta jogada num rio.
            Arturo a amava de verdade, curiosamente. Vendo a loucura a que Henrique trouxe a moça, Arturo avançou nele, insano, irado, colérico! Henrique, muito mais forte da labuta diária, surrou o libertino até a morte, calando seus ensandecidos punhos apenas quando a carne do oponente jazia fria, o sangue todo espalhado, como uma pintura de criança, tortuoso e amplo.
            Preso pela polícia presente no local, Henrique deixou, ao contrário do que jamais pensou, Maria sozinha, pela primeira vez desde quando a conheceu. O peso da responsabilidade esvaía-se de seus ombros, esvaía-se vagaroso como uma ave que voa pela primeira vez. A estranheza daquela súbita leveza lhe causava um nojo incompreensível e certo desespero. Não conseguia, todavia, repelir o alívio. Era imenso demais para recusar um mergulho direto nele. Maria, do outro lado do espectro emocional, sentia o peso de um homicídio, um ódio, dois corações quebrados e todos os seus sonhos sendo enviados direto para o lixo, sem chance de volta. Ela, por sua vez, sentia, portanto, o peso da existência solitária. E era impossível não perecer ao peso e mergulhar inteiramente.
            Agora Maria passa – vinte anos depois – na frente do Larry’s. Que homem inventivo e cheio de visão. A casa continua de pé, agora tocando uma tal de House Music que ela não entende bem como derivou da Disco de outrora, nem como a nova droga dos corredores de banheiros, um tal de ecstasy, dominou tudo e dominou, mais que antes, a juventude, porque, pensou consigo, pelo menos os velhos cheiravam cocaína, não as crianças enlouquecidas, dançando ao som de batidas repetitivas. Percebia que os bateristas e percussionistas foram dispensados por sintetizadores, assim como os tecladistas, os guitarristas, todos, as bandas podiam se reunir a um ou dois instrumentistas e uma voz. O mundo já não era mais o mesmo. E foi naquela discoteca que ela perdeu sua alma para sempre. Jurou que jamais pisaria ali de novo. E jamais pisou.

sábado, 25 de outubro de 2014

Momentos Dele e Dela - Segundo Momento

            Não há o que temer, não entendo tua desconfiança. Sou todo teu, somente teu.
            – Só quero entender o que ocorre. Fale, meu amor, minha pérola divina, tesouro inestimável. Conte-me que te aflige o coração, eu o curarei! – Disse em temor.
            Realmente não entendo. Não há o que entender, eu acho. É realmente só um medo descabido. Estive o tempo todo em casa, não compreendo como ela pode desconfiar! Sou assim tão indigno? Sei e admito, não sou o melhor que há, mas me esforço e tento ser! Dói-me tanto te saber assim, ferida, as chagas ainda abertas, as dores pungentes, vivas, coloridas e chamativas como flores desabrochadas em plena primavera... Eu te quero curar, sabia? Meus esforços são grandes, também não estou afeito a relacionamentos, há muito não amo como tu vivencias... Tu me és o mundo; és tudo.
            – Longe de ti o mundo tem sido um imenso saco de chatice! Confia, eu te peço... – Preferia ter gritado, mas falei manso, não a quero assustar.
            Mulher, não sabes quanto te quero bem! E quanto te quero! De todas as descobertas que fiz tu és a mais importante, a mais valiosa, a mais feliz! E quem mais me felicita neste mundo!
            – Os outros? E eu lá quero algo com os outros? – Não entendo mesmo, que diabo estás pensando?
            Não é agora que vamos falhar. Nem pense nisso. NEM PENSE! Sei que há momentos de tédio, há vezes que parece como arrancar um dente! Saiba, é preciso. Não é meu primeiro, nem meu segundo relacionamento, portanto sei como pode ser cansativo, mas eu te imploro, espera! Resiste! Persiste! Insiste! Continua comigo, por favor. Tu não sabes como eu te necessito!
            – Ué, mas... Eu não entendo, sabe? Sempre tomei fora, sempre levei chute. Daí você vem e tem medo porque você me aceitou e me achou bonito (não sei como). – Disse em voz branda, não posso me exaltar e contar todos os fracassos com a dor que os sinto, são parte do passado e, por ti, eu o esqueço.
            Eu realmente não posso compreender se essas contradições surgem. Um dia, sou negado e humilhado (fizeram e ainda fazem piada) por ser assim. Noutro dia, temes tu porque sou do teu agrado, porque te pareço bonito e atraente. Não faz sentido. Sou teu prisioneiro, confia em mim! Eu te imploro! Não há mal que te possa fazer sem tua autorização. Eu vivo contigo! Durmo junto! Acordo junto! Observo teu perfil constantemente! Vejo e curto tuas fotos! Eu vivo por ti! E ainda assim temes? Não posso me sequestrar a ti, perdoa-me. Não sei mais que fazer. Cansa-me? Cansa, confesso. Não me sou de cansar, porém, persisto. Quero-te muito e luto! Continuarei lutando para que estejamos juntos!
            – Realmente estou me entregando a ti destemidamente! – Confessei. Que ela creia é o que mais espero, pois é verdade!


            – Sou todo teu, somente teu! – Finalizei. Não há mais que pensar, senão que sou teu, somente teu.

Poesia de vida morta

Amiguíssima minha Nadine Batista. Perdoa-me a carta nunca enviada e a infinda demora a enviar as únicas duas páginas que fiz. Não é bonito o poema, nem sonoro, não o consegui conformar à demanda que me fizeste, penso, contudo, que, valendo-me do título como tema, saiu algo que sirva (espero que te sirva à proposta a mim proposta). Aí vão os versos feitos nestes 39 minutos de labuta. Não os limei, é certo, nem acho que deveria, soam grosseiros como pede a situação.

Poesia de vida morta

Morta, não viva, nasceste.
Eras tão bela e formosa!
A todo o mundo prometeste
Graça que não pudeste dar.
Fizemos da casa um lar.
Eras arte, mamãe te esperou muito ansiosa.
Vetado, impedido de te amar,
Fiz meus versos em compulsão odiosa
Por ti, poesia morta, que nunca vieste.

Aqui vão

Aqui vão três dos sete poemas que produzi ontem. Não divulgo os outros ainda porque os quero revisar, mesmo que nenhuma alteração haja. Separam-se os títulos em negrito.

Afinal, quem és tu, mistério?


Não és meu carma, tampouco maldição.

Não és meu manto, nem minha proteção.
Não és meu canto, quiçá minha menção.
Afinal, quem és tu, mistério?
Como te posso imaginar, então?
Quando falas, sentir posso, suspirais.
Quando danças, como um espectro voais.
Quando pensas, tua sombra rememorais.
Tu és senhora de nenhum império.

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Quero ser quem na chama forte arde.

Quem no céu estará?
Quem, por mim, a si mesmo guardará?
Já não peço... É tarde...

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Como o sol, em altivo altar brilhar,

Ser totalmente luz.
Suster mundos em paz, ser quem produz
Sons, bons tons dedilhar.

Vigiar, aos aflitos caminhos trilhar,

Lhes poupar a pobre alma, fazer descansar.
Merecem, estão todos maculados,
Tem-se que acalentar.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Infindável arte

Mais uma vez estou eu versando, ou pensando que posso versar. Disseram-me, certa feita, que eu fazia prosa em verso; se assim o é, então venho cá prosear mais uma vez. Estes humildes versos foram feitos sob o signo de uma alternância rítmica, ainda que sejam todos decassílabos revezam o andamento simulando o vaivém marítimo. O tema veio de improviso, saiu assinalado pela variação sonora muito mais que pelo sentido. Afinal, é preciso exercitar a técnica compositiva antes de me arremessar à prática profissional, ao gosto elevado. Se não estiver muito explicado fica já dito que era essa a sincera intenção. Para benefício da sonoridade arrisquei-me a rimar. Espero que se agradem destes meus poucos e humildes - não menos laboriosos e honrados, portanto - versos.

Querer-me saber no ondear vazio,
Vaguear sem jeito. A ti desvanece
O claro luar, a mim faz fastio.
Moribunda, minha mente esmorece
E em transporte leva ao mundo enfermiço,
Planeta de verde tintura, sombra
Irreal, maldita sombra, maciço
Disforme e sem nome que a mim assombra!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Jamais hei de parar

Se falar e escrever são formas de dar sentido ao ato de viver, então cá estou eu sempre arranjando novo significado para me estimular e fazer seguir. Segue abaixo outro poema sem título, feito hoje, em bem menos tempo que o anterior, de maior simplicidade e temática menos narrativa, mais espectral.

Neste calmo vagar,
Onde o fluido corpóreo,
Do corpo todo céreo,
Faz-te toda luar,

Eu bem quero lançar
Meu corpo junto ao teu.
Neste mundo irreal não sou bem eu,
Sou, aqui, muito deste teu sonhar.

E não paro com a poesia

Este poema será pequeno, prometo. Não para sempre, é certo, mas agora ele é ainda pequeno e simples. Quero dar-lhe, sob o primoroso esforço, tema e forma, talvez mais forma que tema, pois já o tenho um assunto, uma narrativa memorialista, com os tons que a poesia sempre dá às memórias puídas e enevoadas. Aí segue, simples como o concebi em poucos minutos, qual o último, falta-lhe título, servindo, para isso, o primeiro verso.

Numa cátedra estavas tu sentada,

Dentro de nossa igreja. Para cada
Palavra que o bom padre nos dizia,
Lá fora um estrondoso trovão exclamava.
Era das nossas mansas tardes frias
Em que o tempo, parece-nos, ruía.
Apática, no chão tu te perdias
A ver sonhos, delírios, admirada.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Mais um poema

Feita hoje, assim que cheguei em casa, das 19 horas e 31 minutos às 21 horas e 15 minutos, após longo banho, saiu-me uma poesia. Feita mais de esforço e suor que inspiração (e bote suor, esquenta a estação, aproxima-se de nós o verão) ela é filha da labuta diária dos que intentam escrever, ao menos, semi-profissionalmente. Espero que esteja de agrado aos paladares leitores.

Derribam-se os castelos, os costumes,

Restam-nos os poetas.
Se tu fores capaz de atribuir
A outros todo o dom
De reconstituir nossa nação,
Então serás herege.

É de nossos melhores versadores
Que despontam os grandes postulados.
São-nos o soberano e fatal
sumo, a essência mesma da verdade.
Os tolos pensam: "só falam de flores,
Fracassados amores, magoados,
Só choram o que nunca desfrutaram".
Têm lá sua razão de assim pensar,
Há péssimos poetas espalhados
Por toda a nossa terra.

Não é neles, porém, que inspirar
Nossas almas devemos.
Nos mestres do passado buscaremos
As origens de quem somos e fomos.
Pois cantando nasceram as nações.

sábado, 11 de outubro de 2014

Alva Noite

Por um momento faço uma pequena digressão e saio da série Momentos Dele e Dela para expor um trabalho poético que venho desenvolvendo há algum tempo. Chama-se: Alva Noite. Uma coletânea de poemas simples feitos ao sabor dos momentos em que são improvisados, falta-lhes qualquer tema que os una num bloco bem arranjado. Quem sabe o tempo (e o consequente amadurecimento do fazer artístico) trará solução? Não há como saber de antemão, até lá, trago aqui os primeiros quatro poemas para atiçar-lhes o paladar, caros leitores.

Alva Noite

I
Quero urrar teu nome na
Noite espiritual que abrasa
Os corpos em já afogueado
Mergulho turvo, confuso,
Incerto, incandescente, infeliz...
De mim! De nós! Mas jamais
De ti. Jamais de ti, porque tu
És sagrada, imaculada amante
De ninguém, posto que não me amas,
Portanto não amas a ninguém!

...

Ama?
Ama!
Ama-me porque te quero,
Porque te serei bom, serei tua sombra, sombra da
                                Tua mão...
Serei teu amante em tudo, por isso
Ama-me!
Ama!
Sê minha dama, rainha sem trono,
Dona de mim, ainda que eu não saiba ser bom servidor,
                                                                        Quieto e resignado...

...

Se eu deixar de ser, tornar-me não-ser,
Inexistir, tu, pérfida imperatriz, proverás,
Então, meu coração-império?!

II
Os cortes em minha pele não sabem
De todos os pensamentos em minha cabeça.
Quando se abstinha a droga rainha - 
Antes mesmo que as lâminas desabem
Sobre minha úmida pele fria - 
Dentro de mim um movimento havia
Que, como um malévolo elfo, sondava
Os pensamentos e, frívolo, ria
Da miséria que minh'alma virava.

III
No mundo inteiro quem mais te ama sou eu!
Não assusta que, engolindo meu ego,
Finjo não doer, faço-me de cego
E, em amores derretidos, sou todo teu!

Nenhuma musa de poeta grego

Jamais será tão bela quanto o amor que é meu.
'Inda que sem enxergar, porque a dois no breu,
Teu amor sinto em meu corpo trasfego.

Amo-te a meu jeito, num templo irreal

Que crio ao lembrar-te deitado no leito,
Fazendo a memória explodir-se em cores.

Quando de meu corpo me sinto desfeito,

Sinto-me derreter por ti em amores

E o mundo se esvai num sonho auroreal.

IV
Tua alva voz me ordena crueldades
Mil. Eu as obedeço, mas percebo
O mal feito a mim. Temo confessar:
Amofinado estou, angustiado.

Nas palavras que outrora me louvou
Tua voz, percebi má sugestão.

Religião alguma preservou
Minha integridade de mãos tão
Opressoras, cruéis, tais quais as tuas.

Defendo-me. Silêncio. Ris de mim.

Mais nada a declarar, vou indo embora.
As palavras que dizes repulsam
Minha presença. Temo confessar:
Para ficar, razões me faltam, boa senhora.

domingo, 14 de setembro de 2014

Momentos Dele e Dela - Primeiro Momento

            Fecho meus olhos e tudo passa por mim, tudo me atravessa. Como se fosse outra pessoa, não fosse eu mesmo quem sempre pensei ser. Em verdade nunca sou – nunca somos – mas isso é muita digressão filosófica para pouca praticidade. Não gosto dessa sensação. Sinto-me frágil e incompreendida. Por que tem de ser assim? Tem de ser assim? É tudo muito barulhento e confuso!
            – “Para de me xingar, porra!” – Gritei, sem me importar, afinal, ele não se importa comigo.
            Ele não se importa comigo? E todas aquelas noites cheias de bons desejos e sussurros? E toda exposição? E todos os perrengues que ele suportou? Eu sou uma nojenta, mesmo. Uma desgraçada.
            Não! Por que eu penso bem dele? Ele não me merece! Olha as merdas que ele disse! Foco, guria, não é uma brincadeira, estamos falando de problemas. Seu relacionamento tá indo por água abaixo! Vai, calma... O que vai acontecer... Chega! Vai se foder! Eu desisto!
            – “Chega! Caralho!” – Bradei, por fim, impaciente.
            Ele realmente não pode estar agindo assim! Isso é tão idiota! São só algumas palavras, poxa... Eu não errei tanto, não pode ser. Não é lógico! Bem, o que é lógico num namoro, né? Tola, eu. Não deveria devanear logo agora, mas o que ele disse, eu não... Não gosto de lembrar o Marcos me dizendo aquilo. Se ele soubesse como dói reviver tudo isso, nem mesmo começaria! Droga, S. você está chorando de novo! Sua tola! Mil vezes burra! Larga logo dele! Mas se eu largar, que será dele? Que será de mim?! Não tenho nada além dele, ele é o melhor que jamais tive! Como eu poderia deixá-lo por tão pouco? Sim, é óbvio!
            – “Amor, para, por favor... Não aguento mais chorar!” – Desabafei. Sufocava-me, era como vestir uma gravata apertadíssima num dia de verão.
            Sim, é óbvio. Ele se sente enciumado porque eu não pareço pertencer a ele! Como ele quer que eu supere coisas alimentadas por anos e anos? Não é assim tão simples. Beijar minhas cicatrizes para curá-las! Como se ele tivesse paciência pra isso! Não... Isso foi... Amor... Eu realmente não sei como me portar diante dele! O que ele fez comigo, afinal? Já nem sei quem sou mais. Por que tem de ser assim? Tem de ser assim?
            – “Amor! Essa foi a coisa mais linda que alguém já me disse!” – Admiti a contragosto, mas sinceramente.
            Que há com ele, afinal? Parece doido! Ai! Quero matá-lo! Como ele pode me fazer sorrir num momento tão cruel?! Como ele pode mudar de humor tão facilmente? Eu não entendo! Ele quer me deixar doida! Chega! Falar coisas assim tão bonitas agora não vai me comprar... Se bem que ele sussurrando aquela noite, eu me arrepiei toda... Ainda lembro aquelas mãos quentes, levemente ásperas, os lábios deslizando por minha orelha, a umidade resfriando a pele por causa do vento, as estrelas todas bem dispostas sobre o pano preto do céu noturno... Tão poético quanto só ele sabe ser! Não é assim tão simples, meu amor. Você é o melhor, de fato, mas calma lá! Trata-se do meu passado! Ele existente desde antes de você, então acalma essa boca!
            Droga! Detesto quando me confunde e me cala com um beijo, é tão excitante e romântico! Pecado e perdão se confundem num só momento e não sei quem sou, nem onde estou, perco o ar e o pensamento, tudo me arrepia e nada sobra na mente senão a imagem dele. Maldito! Me tem sob controle! Ele vai ver! Deixa só eu me livrar desse abraço quente e macio, onde me sinto segura e a salvo de tudo... Onde o passado parece distante e só quero o hálito quente dele em meu pescoço, enquanto as lágrimas me descem... Não dá! Não tenho forças para lutar com ele! É desleal! Eu sou toda dele! Sou toda só dele, caramba!
            Desleal sou eu, que não sou toda dele... Não quero compará-lo, mas é inevitável! Por que a mente tem de funcionar assim? Tem de ser assim? Eu não entendo! Se devemos superar o passado e nos tornar sempre melhores a cada relacionamento, por que a memória compara tanto as situações? Bem, de qualquer forma, ele leva vantagem, é tão doce! Tão meigo e fofo! Queria abraçá-lo como ele me abraça só para ele sentir como é bom! É tão divino, é como sumir do mundo, é como flutuar num céu ensolarado!
            – “Eu só queria que tu pudesses te ver pelos meus olhos!” – Tive de dizer, entre a incerteza e o cansaço.
            Deus! Exaure-me discutir contigo, homem, tu és tão carente quanto eu, ou talvez mais. Vem cá e deixa cuidar de ti mesmo que não possas cuidar de mim. Eu te sou fiel e atenta a tudo, eu te sou leal e obediente, porque melhor que tu não pode haver. És meu. Sou tua. Só tua. Toda tua. Ama-me, portanto. Não há remédio.
            – “Sou teu anjo, sim! Logo, estou sempre contigo e para sempre te cuido, sem abandonar ou esquecer, até porque és tanto para mim que se te abandono me lanço também à solidão, pois só sou quando contigo estou, meu amor!” – Finalizei, de coração exposto e sangrando as verdades mais íntimas, toda minha sinceridade.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Capítulo III - Ocaso de uma nova era

            Adva, O Vertente Infindo, agradado do sabor, da dor, do toque macio e carinhoso d’A Luz do Mundo, fez Sua luz se refletir por toda a extensão Dele mesmo, portanto auxiliando no cumprimento da dificultosa missão Dela. E o Dia se fez, fazendo-se, fez-se claridade. E a Noite se fez, fazendo-se, fez-se escura. Aqueles Sem Rosto, do outro lado do deserto de Krysta, gritaram muito, pois suas peles ardiam com o calor do Dia e os ventos cortantes da Noite.
            Ela caiu no chão, extasiada.
            Viu diante de seus vivos olhos toda a História e experimentou todas as histórias.
          Apalpou a essência d’O Espaço em si mesma, materializada em toda sua imaterialidade.
            Corroeu-se sua pele com a gentil passagem infinitamente veloz e irrefreável d’O Tempo.
            Esmagou-a como uma pluma incomensurável a Existência em Si.
            Gozou-a e riu-se Dela A Sabedoria.
            Girando e girando, espiralando tudo, estonteou-a A Emoção, de mão dada à sua abstração, O Sentimento.
            Arruinou Seu espírito A Mente, etérea, mas sempre tão densamente povoada.
            A tal ponto incendiaram-na corpo e essência que estava Ela morta ao final da Iluminação do Mundo. Morta como só A Morte pode finalizar tão esplendoroso espetáculo de Vida e Amor. Havia agora, sim, tudo; A Vida caminhava por todos os lugares, tudo que antes era imóvel, tornara-se movimento! Havia agora, sim, tudo; as areias de Krysta ascendiam, uniam-se, dançavam todas juntas e Os Impérios, eis eles aí, estupendos, reluzentes, miraculosos! Havia agora, sim, tudo; O Som, lá estava ele, onde houvesse voz, zumbido, palavra, ruído, onde antes havia silêncio! Havia agora, sim, tudo; A Luz, esse símbolo infinito, fazia o que outrora fosse irreal, agora era forma, claridade, percepção! Havia agora, sim, tudo.
            A Luz do Mundo parou. Nem um espasmo, nem um piscar de olhos, nem uma lágrima. Silêncio, Escuridão e Morte reinavam soberanos sobre aquela carcaça. E de sua barriga, de seu sacrossanto ventre espirrou muito sangue, muito mais que Aqueles Sem Rosto puderam beber e comer, mastigar e deglutir, saborear e festejar. A pele lentamente se rasgava, como um pano esticado pelas pontas, qual se rompe lenta e dolorosamente. Dolorosamente? Ela já não sentia, porque não mais era, não mais estava. Estava? Estava noutro estado, noutra forma, na forma morta, estacionária, degradante. E do tecido de pele rompido saiu O Primeiro Homem.
            Ambivalente, ambíguo, de dupla natureza, essência distorcida e perturbada, ele caminhou lentamente, todo sob o férreo e dócil sangue de Sua Mãe. E sob o sangue de Sua Mãe, ele beijou, ajoelhado, as mãos daquelas três entidades. Filho, portanto, d’A Luz do Mundo, mas batizado, ao nascer, pelo Silêncio, com suas longas e brancas mãos, de dedos tão extensos que remetiam a memória a tentáculos, mas quem tinha tentáculos era A Escuridão, qual também abençoou O Primeiro Homem ao nascer. Mais fundamentalmente, porém, nasceu Ele sob o signo da terceira entidade. Fruto da morte de sua mãe é Ele, também, mortal. E mortal sendo, visitou Os Impérios de Krysta, porque O Tempo, para Ele, agora é a mais preciosa joia, já que A Vida se esvai com o caminhar indiferente daquele. E tudo tem novo significado, porque nada é perene.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Capítulo II - Alvorecer de uma nova era

            A Luz do Mundo seguiu seu caminho pacientemente, umedecendo, com seus ensanguentados pés, as tábuas rangentes, depois a grama em derredor da casa, fazendo voar os grilos do mato, quais finalizavam as Odes de Recepção a Ela. Abismou-se com a beleza dos verdinhos insetos barulhentos esvoaçando e bagunçando toda a harmoniosa sacra canção que compunham e executavam especialmente para ela, sem nem mesmo saber que faziam isso.
            Então ela caminhou para além d’Os Jardins Sagrados, que cercam A Primeira Casa, buscando algum lugar do mundo a modelar, algum pedacinho de chão a exibir seus traços, para que pudesse, enfim, trabalhar, cumprir sua missão, significar seu nascimento de maneira a eternizar-se, materializar sua vida. Passando d’Os Jardins Sagrados, encontrou, finalmente, aquilo que procurava O Deserto de Krysta, aquém de Adva, O Vertente Infindo.
            Por Krysta Ela pôde impor sua forma às coisas, estendendo suas finas e efeminadas mãos iluminava as coisas do mundo e as transformava em imagens ideais, criaturas perfeitas dali nasciam. Rochas reluzentes capazes de brilhar como apenas a Estrela d’Alvorada, outras tão opacas que consumiam toda a luz para si. Tudo era perfeição. As areias d’O Deserto pareciam agora suas fieis seguidoras, obedientes, sabiamente atrás de cada passo seu; o chão marcara-se por seus pés, mesmo que macios e leves, ferviam-se as solas no escaldante calor do solo há muito alumiado.
            Todavia, nem toda peregrinação é alegria, nem esta seria. Mais adiante em seus tortuosos e maravilhosos caminhos por Krysta, A Luz do Mundo contemplou ao longe um agrupamento bastante movimentado, parecia agitadiço. De fato o grupo estava agitado, sentiam sua presença e sua luz os cegava mais que a Estrela Dalva. Eram Aqueles Sem Rosto, anteriores mesmo a Ela, anteriores À Luz do Mundo, contemporâneos d’O Criador Primevo, Seu já extinto pai. Ao avistarem-na, ainda que, tal qual Seu pai, usassem panos sobre seus rostos, viraram seus encobertos rostos em sua direção e avançaram, em passo considerável.
            Aqueles Sem Rosto aproximaram-se dela, ergueram seus magros braços pelos frágeis pulsos e cheiraram sua pele, seus sovacos. Subiram, cheirando seu pescoço, então seu queixo, suas bochechas, seus cabelos. Não eram delicados, ao contrário, grosseiramente a jogavam dum lado ao outro, para que a cheirassem. Seu cheiro era doce e metálico, ainda tinha sobre a pele fina camada do sangue seco de Seu pai. Uma benção ter tão magnífico odor sobre si, em vez de aturar a aridez de Krysta? Ou uma maldição, por atiçar forças e instintos tão profundamente segredados e dela desconhecidos? Seu temor aumentava conforme o jogo de empurra-empurra se tornava mais voraz e violento.
            Antes que pudesse dizer uma só palavra Ela foi erguida, não como uma taça, ou um prêmio, mas como um pedaço de carne. Foi beijada, foi tocada, Sua pele foi arranhada. Quando deu conta de si, já não lambiam Sua pele, mas a mordiam e machucavam. Seu cheiro era tão agradável, Sua superfície tão macia que A queriam dentro de si, queriam devorá-la por inteiro. Foi então que Ela se deu conta da verdade mais fatal e profunda de si mesma: Ela não sabia falar. Seu amantíssimo pai não a havia deixado talvez o legado mais importante. Deu À Luz do Mundo todos os poderes de que necessitava para cumprir sua tarefa, qual ela mal pôde começar a completar já se achou aqui, sendo impedida e destruída por Aqueles que Seu pai talvez chamasse de amigos, talvez apenas convivesse com... Ou talvez fosse viver naquela casa arruinada exatamente para se isolar, sob a proteção do cantar dos grilos do mato.
            A verdade é que Ela não podia gritar para expressar Sua dor quase infinita. Ela não podia dizer nada, apenas sentir. E apenas sentindo Ela tomou a desesperada atitude de se jogar, com Sua própria luz, ao outro lado do mundo, depois de Krysta, caindo muito próxima d’O Vertente Infindo, Adva. Banhou suas feridas, limpando o novo sangue, mais férreo e menos adocicado, agora Seu, d’A Luz do Mundo, não mais d’O Criador Primevo, Seu pai. Adva, agraciou-se do sabor e da cor do sangue Dela, sorrindo e reluzindo, refletindo A Luz Primordial por toda sua extensão, expondo-a ao mundo, auxiliando, assim, no cumprimento da missão Dela.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Capítulo I - A criação do mundo

            Já brilhava a estrela há muito tempo, despontando no céu antes deste fatídico momento. Descendo a visão se pode ver o deserto, com um trecho quase central bem pisado pelos pés daqueles que por aqui caminham; terras vazias e esquecidas, informe solo fértil de possibilidade. Sucede do deserto uma vasta área de vegetação mediana, com muita grama e algumas árvores, harmoniosamente cantam os grilos do mato, exibindo pequenas fúrias. Mais adiante se vê uma casa de madeira, arruinada, faltam-lhe paredes e portas, as janelas, escancaradas, a porta da frente largamente aberta; cupins roem tudo, por toda parte.
            Adentrando a casa encontramos, logo na primeira sala, um espelho quebrado na parede sem janelas, à frente dele a visão primeira do mundo embala-se freneticamente, nervosamente. Sobre uma cadeira de balanço, que não para desde a infância do tempo, senta-se O Criador Primevo, aquele que modelou tudo que vimos então, conterrâneo e contemporâneo – se é que se pode falar em tempo num momento tão distante e eterno, quase esquecido – daqueles sem rosto. As paredes em derredor estão entre o branco e o carmesim, pintadas de improviso nas furiosas ações do corpo que convulsiona balançando.
            Da cabeça se vê o cabelo, ondulado, puxado para trás, chegando a atingir os ombros em extensão, mas não tocando nesses. O olho esquerdo está à mostra, diferente de boa parte do corpo, não está coberto pelas bandagens; ele se movimenta frenético, buscando olhar para todas as direções que pode alternadamente. O resto do rosto e da cabeça está tampado por bandagens dando voltas e mais voltas sobre si mesma, a boca não se exibe apenas os lábios, mas ele é silencioso, como aqueles que, pelo deserto, vagam.
            O peito exibe a vestimenta soterrada sob os tecidos, uma espécie de vestido branco; o abdome é aonde se podem ver mais amarras, vê-se também uma enorme mancha escura, feita por algum líquido, qual chega a pingar. Continuando a descida, nota-se que é, de fato, um vestido, pois as pernas estão cobertas à maneira de vestido e, também, é outra parte manchada pelo líquido que escurece o tecido, em tons quase vermelhos. Os pés estão firmemente plantados no chão, empurrando a cadeira e o corpo para frente e para trás.
            Observando os ombros não se vê nada, nem nos braços, mas os antebraços e mãos estão trepidantes, agitados. A mão esquerda aperta tão fortemente o apoio que as unhas cravam-se nos dedos, enterrando-se. A mão direita, todavia, segura uma lâmina reta, curta, feita inteiramente de metal, com cabo seguro e lâmina em si. Percebe-se, portanto, que o líquido escurecedor é sangue. O Criador Primevo sangra profusamente, movimentando-se em agonia silenciosa. Sofre, porque quer iluminar o mundo amorfo com sua sabedoria, mas já não vive, porque para iluminá-lo é preciso nascer alguém capaz de fazer isso.
            Com a trêmula destra ele começa a cortar as bandagens da barriga que a canhota segura, insegura. Um corte aqui, outro ali, rapidamente o tecido se foi e o sangue escorre, quase jorra. Dentes agarram e puxam, mordem e mastigam a pele da barriga, do interior dela, tornando tudo mais rápido. Vê-se, todavia, apenas as pontas dos dentes, porque há uma sequência de órgãos que se interpõe entre eles e a pele que mordem. A lâmina faz seu serviço rapidamente, fende os tecidos orgânicos e os acutila vorazmente. O sangue agora sai em amontoados, tal qual fezes moderadamente liquefeitas, o som mesmo quando atingem o chão de tábuas é similar. Um pedaço de órgão aqui outro ali, logo se amontoam os pedaços vermelho escuro, quase marrom, aos pés d’Ele. Tudo que ele pode expressar são gemidos contidos, porque nem mesmo a boca se mexe com liberdade sob as bandagens faciais. Nem ele pode agir com liberdade porque Ela o devora internamente, rendendo-o refém de si mesmo, de suas ações.
            Silêncio... Ou quase, os grilos do mato começam a cantar as Odes de Recepção a Ela. Não parece nada diferente com o que se escutava antes, ainda que se tenha plena certeza de que não há nada de semelhante; é, de fato, outra música. Do corpo imóvel, respiração cessada, começa a sair, pela abertura da barriga, A Luz do Mundo. Ela, banhada no sangue d’Ele, caminha sobre as tábuas, seus sutis e delicados pés deslizam sobre o fétido líquido escuro.
            Ela seguiu, então, para dar a luz ao mundo. Formá-lo, formatá-lo, dignificá-lo e interagir com Aqueles Sem Face, conterrâneos e contemporâneos de seu progenitor.

domingo, 23 de março de 2014

A (In)determinação de Literatura

            Dizer o que é literatura, defini-la, é um dos maiores problemas sobre o qual ainda reflito. De algum modo deve ser possível, sim, definir e conceituar literatura, ainda que seja uma definição temporária e presa a seu tempo de concepção. Tratar do que é literatura é, também, ditar suas características e limites, ou seja, sua extensão e suas fronteiras. É certo que a definição proposta aqui é historicamente associada, ou seja, influenciada pelos padrões estéticos de seu tempo – como também intimamente ligada à minha construção individual e à minha personalidade. Posto isso, podemos começar.
            Há muito se fala de literatura, texto literário, como textos escritos de alguma forma, ou com algum conteúdo, que os torna literários. Há bastante consenso sobre grande parte daquilo que é tido por literário, ainda que isso não seja universalmente válido. Ao longo da história, mais e mais escritos e escritores foram – continuam sendo – adicionados ao que é tido como literatura; dessa forma se vê que o prosseguimento histórico e a revisitação de textos do passado forma, pelo menos, parte do que é a literatura. Vê-se, portanto, que a valoração associada a cada época dita, pesadamente, o que é tido por literário, assim, também, faz crer que a literatura se associa, de alguma forma, em sua contemporaneidade com suas formas do passado, seja pela estrutura ou conteúdo. Essa relação dialogal com o passado demonstra que há alguma característica das obras literárias que se preserva ao longo do tempo. Chamaremos a essa característica de “literariedade”.
            Sabemos agora que para identificar se algum texto é literatura ou não basta encontrar nele a literariedade. Isso parece facilitar a questão, ainda que não tenhamos feito muitos avanços. No que diz respeito à literariedade, como definida no parágrafo anterior, pode-se pensar de várias maneiras sobre ela; uma dessas formas falaria, suponhamos, das formalidades estéticas do texto, pode-se contra-argumentar apenas citando Eneida e Dom Casmurro, obras que são igualmente literárias, jogando por terra a tese da semelhança estética. Alguém, então, questionaria se não é o conteúdo do texto que faz nascer a literariedade; novamente as duas consagradas obras são o contraexemplo. Outro poderia questionar se ao é o gênero o fator determinante e, mais uma vez, o exemplo que foi feito acima serve e é suficiente para negar a hipótese.
            Nenhuma das concepções anteriormente expostas é satisfatória perante a demanda universalista e unificadora do conceito de literariedade, mesmo por existirem diversos contraexemplos. Contudo, de maneira diferente, alguém, é bem possível, falasse do prestígio do autor literário para definir uma obra como tal; isso seria um contrassenso duplo, primeiramente porque, dessa forma, as obras iniciais – de quando o autor ainda não era conhecido e reconhecido – não fariam parte da literatura; em segundo lugar, porque é a obra literária que confere ao seu respectivo autor a característica. Isso nos leva à reflexão final.
            Como exposto acima é o texto literário que, enquanto tal, dá ao escritor a literariedade, portanto também à obra dele; aqui alguém poderia, deveria questionar se não é, portanto, o leitor que confere e concede a literariedade a cada texto. O questionamento é válido e dificilmente apresenta contraexemplos. Frases do cotidiano, da conversa informal, viram poesia nas redes sociais. Obras contemporâneas atraem mais a atenção do grande público que os chamados eruditos. Fica evidente que o leitor agora exerce papel fundamental em achar ou conceder a literariedade àquilo que preferir. É certo que muitas convenções e consensos perduram, tal é a raridade em se encontrar alguém que leia A Origem das Espécies pela “prosa poética” de cada parágrafo e apontamento. Isso é ótimo, pois mantém alguma semelhança entre autores e obras, alguma linearidade à literariedade; torna-se ruim quando não permite o questionamento e a adesão de novos autores e obras a toda essa história.
            Essa foi minha trajetória pessoal e minha definição do que é literatura, aonde cada indivíduo determina, para si, o que é literário, com seus gostos pessoais e suas noções sócio-histórico-culturais. A questão sobre a qualidade da literatura, todavia, se boa ou ruim, é tema para outro texto, mas deixo avisado que não a vejo como tão aberta a livre, como tão pessoal quanto a literariedade.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Bateria Fraca

             Aos que de mim nada sabem, chamam-me Igor S. Livramento, (ignore o S. de Silva), sou baterista há sete anos, autoproclamado escritor desde os 16 e leitor esporádico desde os 14. As minhas inclinações e percepções acerca de ambos os temas, literatura e música, serão exploradas no decorrer das semanas, meses e anos da vida deste blog. Misto de pensamento cotidiano com reflexão filosófico psicológica de natureza bastante particular e sem qualquer cunho doutrinário ou teórico. Minhas próprias leituras nestes e noutros tantos assuntos estão ainda sendo feitas e recentemente desenvolvi muito gosto pela leitura filosófica (curiosamente agora que ingressei no curso de Língua Portuguesa e Literaturas).
            Eu, qual todo escritor que passa por uma crise criativa, estou virado num celular velho com pouca bateria. A mistura de brevidade e desespero assombra cada princípio de ideia criativa antes mesmo dela se desenvolver. Curioso como os pensamentos se confundem e perdem a clareza com a falta de prática. Acredito que mesmo a criatividade pode – eventualmente deve, depende dos seus objetivos e necessidades – ser treinada, assim como o encadeamento de ideias, desenvolvimento textual, enfim, todas as formas de expressão de pensamento e sentimento (que não deixa de ser um pensamento).
            Jazz fusion dançante de fundo, quase disco music, só faltou a voz trovejante de Tim Maia por cima, pra contagiar de verdade, o que será estranho, considerando que a música é japonesa.
            Até certo ponto me diverte a maneira como música e literatura interagem e são tão fortemente unidas enquanto formas maiores da expressão do sentimento sendo, repetidamente, elaboradas e comentadas por filósofos ao longo da história como as mais sublimes, elevadas, apropriadas, qualificadas formas de arte. Hei de concordar, porque é inegável a um músico e escritor, ou escritor e músico, como as inclinações ditarem, que essas artes possuem em si mesmas a essência humana, não apenas da expressão, algo mais, algo de visceral, orgânico. Não é, contudo, a temporalidade, pois que a dança também a possui e, para mim, pouco ou nada expressa, exceto quando exercida, em detrimento de apreciada – qual não é o caso das outras duas citadas, porque quando as aprecio sinto nelas universalidade, capacidade de comunicar comigo e com qualquer outro, seja positiva ou negativamente. No comunicar refiro-me à comunicação real, íntima e sentimental – aqui não digo emocional porque as emoções são as exteriorizações dos sentimentos, o que vem a ser objeto de análise posterior e descabida aqui.
            So you see, para um texto de reabertura até que estou me estendendo bastante. Sobre a curta vida da criatividade, parece curada após essas poucas e loucas ideias. O que não é de todo verdade, porque houve uma substituição pela enxurrada de ideias apresentada no parágrafo anterior; ainda pior que nada expressar é expressar em excesso aquilo que deve ser ordenado e desenvolvido profunda e qualitativamente. Nalguma das próximas publicações prometo dissertar mais no tema da literatura, noutra da música e assim vou, colocando meus pensamentos dos dias semana após semana.
            Por hoje é isso, ainda que mil ideias me estejam afetando a mente agora. Antes que alguém pergunte, minha proposta é publicar textos semanalmente, ao contrário do comum hábito dos blogs de textos diários. Tenho minhas razões para isso, sendo a mais fundamental delas o desejo pelo desenvolver das ideias ao longo dos dias e, nas madrugadas de domingo, escrevê-las e publicá-las. Portanto, sejam bem-vindos!

sábado, 8 de março de 2014

Um aviso, talvez um teste.

Tanto tempo que não faço uma mísera postagem... Lá venho com mais e mais conversação, de que adianta? Sou relaxado, insípido, estúpido, direi. Não faço nada há tempos com este bendito blog.