terça-feira, 30 de maio de 2017

Diário - 2017/05/29

101. Eu escrevo por todos os corações partidos, não esses de historinhas melosas, mas os verdadeiros sofridos, os fodidos, os que não aguentam mais um mundo tão horrível – os feios. Escrevo por esses abandonados, esquecidos, ignorados, desvalidos ou invalidados pela estupidez do mundo. Escrevo por esses alimentados pela miséria que sustentam o(s) mundo(s) a cada instante e que nunca se vê. Ser feio é uma bênção, porém não como se propaga. Ser feio é divino.

102. A idiotice de empirismos contemporâneos faz ignorar a enorme brutalidade de atos como a traição. É preciso trazer a verdade à tona e compreender que um ato como esse está no rol das mais absurdas violências já cometidas. É preciso ver como um "não quero nada sério agora" (mas cheia de vários, um por noite, um por festa, ou seja, a seu bel-prazer, fazendo das relações meros pedidos num cardápio desse restaurante fajuto) é ainda uma forma de traição ou mesmo corrupção, uma hipocrisia descarada e uma violência horripilante.

103. Dois pesos desiguais numa balança imprecisa.

104. Eu sou ruim, muito ruim. Mas meu ser não é achatado, diferente, ele é multifacetado em mais dimensões que o universo. Se por um lado sou mesmo preguiçoso, colérico, insurrecto, detestável; por outro, sou genial, estupendo, reflexivo, profundo, talentoso, em suma: elogiado. A disputa é desequilibrada, certamente. Os mundos que habito – ou me habitam, é a mesma coisa – fazem emergir muitos projetos, todos laboriosos, contudo estupendos, maravilhosos. Como proceder? Essa a pergunta fundamental. Se o caminho a frente é sempre apropriado, se ele só nos afigura quando estamos aptos, por que a sensação de inaptidão? Por que as intempéries tantas e tão difíceis? Esses objetivos, eu quero atingi-los todos! Mas se trata de fazer e não querer, o que complica muito as coisas. Preciso chegar lá? Devo? Sim, é uma dentre tantas minhas missões, o cerne de muitas outras. Mas por qual caminho?! Ah! Diacho! Vamos que vamos!

105. A beleza é luxuriosa, torpe, vil: serve para excitar.

106. As coisas têm seu próprio partido político. Não sem motivo achamos ridículas ideias como "partido verde" ou "partido ecológico", porque, no fundo, vemos que as vozes ali são sempre humanas.

107. Metáfora é uma forma de analogia, não o contrário. Por outra: an-a-logia, quer dizer, essa tentativa de entender pelo ego, pelo Eu, pela identidade, é nada mais que a morte de toda potência, recusa da alógica.

Diário - 2017/05/28

100. ∅

Diário - 2017/05/27

92. As pessoas associam pessoalidade às coisas mais impessoais e também o contrário. Coisas como a geometria ou a ordem alfabética são tomadas erroneamente por impessoais, enquanto coisas realmente impessoais, como o ódio, a vingança, o sofrimento e o gosto, são tidas por íntimas e privadas e particulares e pessoais. É um erro crasso, desses de causar vergonha. A música, a pintura, a política, a moral, a cultura enfim, é impessoal e verdadeira. O resto não é falso, pelo menos não sempre, mas é pessoal e está sob os ditames do sabor e do prazer, sob o penoso jugo do gosto. As coisas impessoais são regidas por leis, certezas, verdades, ou seja, possuem certo e errado, estão sujeitas apenas a taxas mínimas de variação.

93. O problema do mal já foi resolvido por Leopardi: não é um problema, simplesmente não existe mal – isso é o mesmo que dizer tudo é mal, como escreveu o poeta. Não é nem ontologia, nem moral, nem ética, nem economia política, simplesmente é o Real. Exatamente o mal não cessa de não se escrever, é o mesmo funcionamento do Real.

94. O contrário de medo não é coragem, mas .

95. Olhos que choram enxergam melhor.

96. Se a advertência religiosa prega: "é preciso ter fé, porque tudo aquilo que nos vem só nos vem por já estarmos preparados para o que virá", então ela sobrevive tudo lógica de retroalimentação. Espécie de loop em feedback. Vem para mim porque estou pronto, mas eu só sei que estou pronto porque me veio, então eu estou pronto, pois me veio, and so on, and so on.

97. Estacionado no supermercado percebo muita gente jovem saindo dos carros e indo às compras. Será que os pais são tão formativos a tal ponto?

98. Certa feita, saindo de um mini-curso marxista bastante inteligente, expliquei para uma feminista (por que são sempre elas?) como os substantivos masculinos, em português, não são marcados, enquanto os femininos são, portanto invalidando toda a idiotice que ela pregava sobre uso de 'e' e 'x' ou mesmo arrobas. Como ela me respondeu? Apelando para a experiência superficial, ágil e imediata como não correspondente à minha explicação. Ou seja, ela não poderia tomar uma atitude mais anti-marxista. O marxismo é essa estupenda hermenêutica da modernidade. A última coisa possível para um marxista é que as coisas sejam como aparentes para a empiria, por isso mesmo sua posição materialista, que não é empirista, Lenin já alertara há muito. Estupidez do mundo (pós)moderno.

99. Ø

Diário - 2017/05/26

86. "Se você não vive para servir, não serve para viver." É mesmo um mundo terrível.

87. Duvidar, descrer, colocar em disputa, é a maior forma de crer e respeitar. Crer cegamente é um desrespeito enorme. Só aquele que duvida será amado por Deus. Ou pelos deuses.

88. "Quanto mais se escreve, mais as palavras vêm!", escreveu alguém. Com certeza esse alguém não considerava a escrita, quer diz: cum sidera, com os astros, com o espaço, não sentia nem vivia essa força cósmica que nos impele à arte das palavras e dos sons e das imagens e do pensamento, enfim, essa língua sempre estranha estrangeira a nós.

89. Quem disser que as coisas só dependem de nós pouco ou nada entendeu. Há instâncias absolutamente superiores que nos governam a seu bel-prazer. A situação absolutamente caótica da política brasileira hoje, o declínio do império Romano, olhe-se para onde for e se verá a ação dessas forças impessoais, anti-éticas, poderíamos dizer até cósmicas. Tomo esta nota para não cair na facilidade de certas palavras que já me convenceram e que eu mesmo já repeti diversas vezes, dum humanismo barato e infrutífero, uma espécie de culpa coletiva ou coletivizada, um horror só. Eu não sou aqueles políticos corruptos e mesmo que eu esteja em erro nossos erros são dessemelhantes. É por isso que esse história de trocar os políticos resolver tudo é uma balela medonha. Isso aí é o fracasso do modelo de República Democrática Representativa, aquilo que já denunciavam as vanguardas históricas: a falência, a invalidez do conceito de representação (e suas respectivas aplicações em todos os âmbitos). O mundo não funciona por figuras, mas por imagens.

90. Qualquer miséria, qualquer migalha de dor se chama hoje "uma tragédia!" com todas as letras e a exclamação junto. As vezes até uns gritos e discursos inflamados. Eu me pergunto até que ponto isso é bom. O humanismo barato que hoje domina a Internet é das piores doenças já espalhadas, é como o zumbi, o undead, o morto-vivo : ele te reconhece como inimigo que precisa ser mordido (essa expressão é boa, já explico), precisa ser infectado, quer dizer, precisa entrar na dança, no jogo, na lógica, para se tornar aceitável, suportável, tolerável são as palavras certas. Mordido é bom porque se usava para falar de pessoas muito afetadas por algo: "ficou mordido de ciúmes", etc., quer dizer, afetou-se muito, encheu-se de calores e humores, brandiu o gládio da justiça por céus e terras para vingar desvantagens. Por favor! Vocês são insinceros pra caralho! Hipocrisia dos infernos! Semana que vem já nem lembrarão da merda que aconteceu ontem! São condolências vazias, sentires sem sentido, sem sentidos. Humanismo de curtidas, esvaziamento até da experiência mais autêntica que nos restava, a dor, o sofrimento! Quando esse horror vai parar?!

91. ∅

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Diário - 2017/05/25

83. É preciso muito mais coragem para produzir o dissenso, para discordar, para dizer a verdade, do que para ser "vanguardista". A própria vanguarda não é aquilo que vai à frente, mas o wart, a guarda, o que toca o rebanho lá de trás.

84. Vanguardas, hoje, são impossíveis. Não porque a ideia de vanguarda seja ruim ou qualquer coisa, não, isso tá beleza. É simplesmente porque moralmente é inviável: mudança é a ordem do dia, mas, como bem já sabia Malevich, resistir é também problemático, não mudar, ficar paralisado; a nostalgia também não serve, como bem criticou Foster, esse retorno desmesurado ao passado, sem respeito pela história, ao contrário, sendo plenamente contemporâneo, agindo como um homem de seu tempo; Didi-Huberman tenta dinamizar/dinamitar a imagem, repotencializando e é genial no esforço, mas não é suficiente. Quando Sebastião Nunes critica a premiação de Modesto Carone pela tradução de O Processo, de Kafka, na revista Medusa, aí sim temos algo que presta – ainda no final, quando critica a própria qualidade literária de Kafka executa um gesto excelente, finalmente capaz de potencializar o discurso (e inclusive mandar à merda aquele livro inútil de "Deleuze-Guattari" sobre "literaturas menores" [hello, há um motivo para esta merda ser menor!] e Kafka). O próprio Kafka duvidava de sua qualidade (e com razão)!

85. Ø

Diário - 2017/0524

82. Quem nunca odiou nunca fez nem teve uma vinculação verdadeira. Há um culto ao corpo contemporâneo simplesmente medonho. Jovens são alcoólatras e sequer admitem porque bebem somente em dias específicos, mas a recorrência do ato é suficiente para classificá-los como. São francamente doenças espalhadas.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Diário - 2017/05/23

70. Qual o quid da linguagem? Qual sua coisa? Quando se diz "a coisa mesma (da linguagem)", o que se diz realmente? Qual a quididade da língua afinal? Há quem diga que ela é um repositório da(s) humanidade(s).

71. Filontogênese (filogênese + ontogênese).

72. Seria a língua uma partilha?

73. Por que Saussure evitou o uso de símbolo (Peirce; fenomenologia; simbolismo), em nome de usar signo? Parece-me que Saussure queria precisamente discutir uma ontologia, não uma fenomenologia, pouco lhe importava o como (humano) das coisas, mas sim o que, o quid e também o qualia.

74. Se pudermos definir a forma de vida wittgensteineana, diremos que é uma atividade regrada e regulada. Esse foco na atividade avisa algo, sinaliza algo (ética; moral; vida do espírito).

75. A linguagem não é (in)dependente.

76. Talvez o zeitgeist, o reconhecimento intencional (especialmente amplo, social, a vontade coletiva) tenha servido para a evolução humana. Pensando duma perspectiva sócio-cognitiva da evolução humana, percebe-se a utilidade que tal recurso nos ofereceria: colaboração e sobrevivência, decisão coletiva e influência, convencimento e persuasão dos piores espíritos a aderirem às melhores decisões. Seria hoje isso um recurso ainda possível, necessário, ou viável? Cf. Death Note, mesmo Dragon Ball, games como Pokémon! e outros RPGs – um sujeito individual acumula poder e o utiliza para realizações particulares, a partir de seus interesses privados; mesmo realizando vontades "coletivas", isto é, que muitas pessoas têm, as realizações são particulares, não são coletivas, o êxito e o mérito são seus, quer dizer, o louvor é seu.

77. O duplo, o dual, o bipartido, é sempre um segmento de reta, promessa de infinito, por isso ruim. O tripartido, o triplo, o ternário é potente. Daí os "marxistas" serem tão ruins (essa qualidade felizmente retorna nos chamados pós-marxistas) em suas análises, com seu sonho de "totalidade" e de "reflexo" (olha como a escolha lexical é péssima!) "do particular no universal e do universal no particular", poder-se-ia trocar por "manifestação" e, ademais dos problemas óbvios, seria a mesma coisa. Eles são péssimos, cansam mesmo, viu?! O paradigma, o singular são esses lugares faltantes à boa explicação a que aspiram esses trastes insuportáveis. Em sua maioria são dogmáticos, o que é terrível. Seja em nome de um autor ou de um pensamento, não sabem se sujar, profanar, macular, repetem os gestos dos idealistas que tanto detestam em última instância, quer dizer, tentam executar de novo a "limpeza do pensamento".

78. Sou muito mal interpretado hoje. Era de se esperar. Como cantou Robert Flynn: "one day you'll see I've always been right, right".

79. Não temer o mergulho na ficção, ao contrário, desejá-lo, realizá-lo. Posto realidade e ficção se configuram da mesma maneira, há apenas uma mudança de trato, é saudável amá-la.

80. O que se deve entender por história? Quero dizer, quando alguém disser "história do Brasil", por exemplo, o que "história" deve evocar? Todas as definições dadas não são suficientemente científicas, quero dizer, não moldar às ciências naturais, mas conceitos aplicáveis à primeira mão, compreensíveis de pronto, ao contrário, são poéticas demais, tão inúteis quanto a poesia. Lembremos: geisteswissenschaften, fazemos ciência, temos nosso l(ug)ar, nossa voz, nosso direito, temos até método!

81. Se você não aprecia a morte, esqueça qualquer chance de falar da vida com alguma qualidade. Talvez até mesmo de viver com qualidade.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Diário - 2017/05/22

65. As pessoas tendem a achar que o pensamento mitopoético da vida (enquanto uma substância divina, uma essência inoculada na existência, advinda de algum lugar ou entidade sobrenatural) é uma forma revolucionária de pensar e tomar a vida em consideração. Enganam-se. Essa forma vigeu até um século atrás ou ainda mais recentemente, essa concepção existe em quase todas as religiões e mitologias do mundo. Ao contrário, uma forma realmente revolucionária é atribuir à vida uma concepção puramente material e natural, ou seja, sequência infinita e infinitesimal de ocorrências físico-químicas, nada mais – a verdadeira democracia da existência, afinal nada é essencialmente diferente. É talvez o pensamento mais revolucionário, pois exige muita fé para não se deixar cair num indiferentismo barato. O pensamento mitopoético é bonito, mas não é arriscado.

66. A cultura, ao contrário do que diria Adorno ou mesmo Benjamin (em algumas leituras), é o primeiro lugar da barbárie. O que é a MTV senão isso!?

67. O sistema é totalitário em diversas formas, a começar por não excluir nada de si – tudo pode ser comercializado, tudo pode virar mercadoria. É por isso que não há mais "revoluções totais" (estamos a 100 anos da Revolução Russa e ainda fizemos tão pouco como aqueles camponeses esfomeados), há apenas singularidades (as quais não são nem universais, nem particulares – sai, "filosofia"!) que lampejam como vaga-lumes na noite, sugerindo um caminho ou outro, mas nunca ditando ou mostrando definitivamente, senão alusivamente.

68. Lúcifer, aquele que traz a luz – aquele que traz o mal. O mal, portanto, é a luz, é saber, lembremos da árvore de fruto proibido: do saber. Luz é também ver: visão e visível – poder ver e tornar visível, dois aspectos dum mesmo pecado, quer dizer, a aparência, o aparecer, o mostrar, a apresentação. Esse Deus hebraico (sempre eles!) queria a desaparição, o desconhecimento.

69. Há algumas leis para o desenvolvimento do espírito, mas elas ainda permanecem pouco aceitas, não desconhecidas, apenas ignoradas, talvez pela sua simplicidade, ou pela sua força. Mas há motivo para os antigos identificarem a vida do espírito com a vida moral.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

domingo, 21 de maio de 2017

Diário - 2017/05/20

61. Hoje se propaga a "experiência de vida" (em verdade vivência) como fonte sólida para argumentos fortes. Mas é isso verdade? A vivência é limitada e finita. A imaginação, por outro lado, é vastíssima e infinita. A criatividade, diriam os clássicos com muita sabedoria, é muito maior que a realidade, muito mais potente que a finitude.

62. Marxistas são muito chatos. Eles se esquecem que sua amada "realidade" é, no máximo, um substantivo; no mínimo, uma metafísica.

63. Genearqueologia (genealogia + arqueologia).

Diário - 2017/05/19

55. A filosofia contemporânea, no seu apego à linguagem, acabou relegando aos romances, aos seriados, aos poemas, ao contos, aos vídeo-games o viver, o vivre sa vie, viver a (sua) vida, realizar a vida, realizar-se, gozar o puro ser, puro estar, o mero existir. As coisas vivem por nós.

56. Estado de Excesção (excesso + exceto). Acúmulo infinito de coisas (essas mesmas que vivem por nós); funcionamento da lei pela ilegalidade.

57. O que é um meta-ato? Como defini-lo? Só a partir dele podemos fundamentar uma ética renovada.

58. Quando a teoria deve se sobrepor aos fatos não temos scientia ou sapientia, apenas "ciência".

59. Eu vi dois adolescentes se encontrarem e "ficarem" (uia, verbo ruim!). Ela chegou primeiro, comeu algo, mexeu muito no smartphone, não escovou os dentes. Ele chegou depois: jaqueta de couro, calça jeans desgastada, tênis qualquer. Um de cada lado da mesa, começa a partida. No princípio ela ainda mexia no celular (nervosamente). Ele demonstrava extremo interesse nas palavras dela; ela se fazia desinteressada, sequer o mirava. Dado momento ela o convidou para sentar-se a seu lado, queria mostrar algo na tela. Viram, riram; ele a encarou nos fins do riso, ela manteve o olhar desviado enquanto a dentição sumia de minha vista. Voltei a Leminski, ele me esperava deitado sobre a mesa. Quando busquei o vazio para meditar algo dito pelo poeta, lá estavam aquelas bocas coladas, mãos sem rumo, roupas amassadas, peitos comprimidos, respirações ofegantes. Por que essas coisas horríveis (ainda) acontecem? Tudo isso foi ontem, na praça de alimentação dum shopping.

60. Human-idade; comun-idade; civil-idade; assim como as outras "-idades" (e.g. modern-idade) são também idades, essas também o são: épocas. Por isso é difícil pensar essas coisas hoje. Se ainda estivessem aqui, vigendo, seria mais fácil.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Diário - 2017/05/18

46. Todo bom pensamento é um pensamento da vida e, pelo revés necessário, pela refração inevitável, é vida do pensamento. Essa história de morte é muito poética, mas já deu pra bola. Os filósofos precisam aprender com Oswald.

47. Não se produziu ainda nada à altura do concretismo nas letras brasileiras. E isso é dizer muito! Os caras não foram pouca coisa, ao contrário, foram muitíssimas e excelentíssimas coisas! A questão é que ninguém os herdou ainda. Talvez José Lino Grunëwald, mas mesmo assim O grau zero do escreviver é um saco, já atestado desde o título tributário à teoria sua contemporânea (mau sinal). O plano-piloto para poesia concreta era genial, exceto pela ilusão de ser algo frio, racional, desinteressado – eles foram outros que leram só um pedaço de Oswald: quando for estomacal será de verdade (gut feeling)! Afinal de contas, o cálculo é uma questão de paixão. De resto é um manifesto genial, não à maneira de outros posteriores, mais políticos, exatamente por não se envolver nessa sujeira e permanecer um manifesto teórico.

48. Uma única palavra: / uma única pá lavra / os sulcos da língua / ou da linguagem / é a poesia.

49. A pedra do caminho de Drummond mais ferrou do que ajudou a poesia. Ela se tornou poesia de "sacada", de "tirada" (humorística), poesia de wit. Leopardi repudiaria, com sabedoria, esse tipo de coisa. Não porque seja absolutamente irrelevante, não é, mas porque essa pretensa inovação tão marcante inexiste. O problema é, de fato, os leitores desse poemeto, os lambedores de botas, os que insistem na sua "atemporalidade", na sua importância infinita e sempre renovada (não pelo poema, mas pelas leituras dele). Qual o problema aqui? Falta espírito na língua.

50. Letra na imagem X letra e imagem.

51. 612309 (poesia)

52. Nunca diga que uma mulher é a coisa mais linda que você já viu na vida. Não porque ela não seja mesmo a mulher mais linda, mas porque isso é assumir que humanos importam muito quando não importam de fato. Há sempre coisas mais bonitas que nossos olhos a enxergar por aí.

53. As criaturas mais bonitas são as que estão eternamente morrendo.

54. É inviável ler qualquer texto sem hermenêutica, sem essa atitude de suspeita, sem filologia, sem o gesto da escavação. Nossa sociedade, como já venho dizendo, é pornográfica, quer dizer, crê e deseja o "nu e cru", a anti-hermenêutica. Por isso a pobreza de leitura. Toda língua é esse campo arqueológico, esse empilhamento de placas tectônicas – palavras sob(re) palavras.

Diário - 2017/05/17

42. O ser precisa do ócio para ser. Sem essa possibilidade nunca haverá pleno desenvolvimento das faculdades. Essa ética trabalhista é uma das ruínas a que nos apegamos. E não falo de "ócio criativo", mas de ócio pleno, diletantismo – é só nesse momento de gozar a pura existência que o ser decide sobre o que gosta e desgosta, seus rumos e tramas. Sem a recuperação da vida interior nós continuaremos nessa exacerbação de vida exterior desajustada.

43. As palavras andam no tempo. Não é porque emergiram lá atrás de seu banho eterno que são piores ou melhores que as recém-retornadas. É uma questão de verdade, não de tempo ou moda; éon, kairós, não epoché.

44. Pensamento do limite, limite do pensamento. O que significa dizer algo? Quero dizer: uma ideia, um pensamento, um objeto, uma palavra, tudo isso se corresponde ou não? E se relaciona? Como? Ao mesmo tempo em que isso é pensar limites, também se constitui nos limites do pensar. É impossível um pensar puro, mas em vez de se arremessar, deitar e rolar nessa imundície, nesse pensar sujo, confuso, os "filósofos" (leia-se: idiotas) tentam "limpar" o pensar, tentam tirar-lhe toda potência e força e se prendem a um ideal, isto é, caem como presas nas armadilhas que estão montando.

45. Em algum lugar disso tudo está o que eu não quero ler.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Diário - 2017/05/16

31. Escritos de escritores sobre escrita são os melhores. Tem muita verdade ali que escapa à crítica. E na crítica há o que escapa ao escritor.

32. O realismo não é uma doença, tem suas potências, mas é com certeza um burguesismo. A linguagem nunca é real, até porque o real é o que nunca cessa de não se escrever. Então as fórmulas de que o realismo "mostra as coisas como elas realmente são" são pura balela e qualquer um que lê sem ingenuidade já sabe disso. Toda verdade se esconde no mito e no mágico, no místico, na teologia, na alegoria enfim. Como nos ensina o Marco Polo de Calvino: "A mentira não está no discurso, mas nas coisas." É no mais íntimo e no mais sensível (não necessariamente sentimental, mas geralmente aqui também) que se mostra a verdade. O sujeito angustiado pela pergunta, ou só curioso, não poderá ser respondido satisfatoriamente pela filosofia, nem pela história, nem pelas histórias mil que a história esconde, nem pela maioria das ficções, apenas aquelas ficções de imaginação podem responder verdadeiramente.

33. "Temos dificuldades em dizer o que pensamos, isso é evidência para dizer que pensamento e linguagem se diferenciam." Não, não é evidência. É apenas evidência de que a língua, usando-nos, mostra-nos insuficientes para si. Falam também da ambiguidade como evidência, porque aparentemente o pensamento não seria ambíguo e a língua o seria. Por favor! Falta-lhes psicanálise. É mais que esperado que sejamos ambíguos enquanto pensamos. Nossas ações são ambíguas, nossas atitudes e emoções, nossos sentimentos, todos são ambíguos, quer mais pensamento que isso?!

34. "Isso que você chama consciência é uma bela mentira e você, achando-se muito racional, muito superior aos animais, deixa-se enganar por meras interações químico-elétricas nesse bolo de carne fechado numa caixa óssea muito belamente recoberta por pele."—Lemonstein

35. Quem pensa, mesmo uns cinco minutos, sobre a língua, percebe que ela é unimultipolar.

36. Se fossem mais sagazes, perceberiam que entre "sujeito cognoscente" e "objeto de conhecimento" há uma distância abissal, perceptível de longe. Se fossem iguais seria "objeto cognoscido" – variação que preserva a diferença significante, igualando a sintaxe –, ou "sujeito de conhecimento" – que geraria uma igualdade significante e também sintática.

37. Quando o sujeito começa a aprender? Qual o momento crítico? Onde se localiza a fronteira, afinal? É uma daquelas situações exemplares dos limites do pensamento e do pensamento do limite. Situação exemplarmente dialética, daquelas boas mesmo.

38. O nome é o princípio da herança. Nós herdamos nosso nome – isso é fundamental. Herdamos todos os nomes, exceto os pessoais, esses são uma herança não herdável, uma herança sem herança.

39. O pós-modernismo surgiu na arquitetura e esteve associado por algum tempo só a essa arte. Tomando-o por paradigma, analisaram-se outras manifestações culturais, mas isso é um desrespeito e um erro (hoje vemos bem onde foi dar tudo isso). A arquitetura tomou as cidades com seus prédios, sua pior invenção, não merece respeito algum. Ela tem dessas coisas, uma desgraça. A pintura, por exemplo, continuou modernista ou se rendeu à fotografia e a um pretenso realismo. Alguns videogames resistem, mas nem todos – são o último reduto de esperança. Mesmo boa parte das religiões se perderam para o mundo (pós)moderno.

40. Não é possível que a "democracia" do romance burguês (realista) seja levada a sério hoje, a despeito dos disparates dum Rancière ou outros. Essa ideia de que os pormenores "reais" (esse excesso de descrição visando uma verossimilhança forçada, antinatural, artificial enfim) são sinais de uma igualdade estrutural dos elementos dispostos ali, dos seres ficcionais apresentados. Essa é uma ideia terrivelmente falsa, horrenda mesmo em sua ironia hipócrita, em sua mentirosa consciência, que só tem aparências de consciência arguta, astuciosa, quando se mantém ignorante ao que realmente acontece tão perto de seus olhos que já não pode ver. Lipovetsky bem nos avisou: a democracia do consumo é a única possível hoje. Mesmo a crítica exercida por um Groys (a despeito de suas afirmações contrárias, como se quisesse suprimir a potência do que disse em nome da ordem do dia) ao modelo do mercado de arte é fecunda nesse ponto. Não é sem motivo que são objetos sempre, nunca pessoas, que são ajuntados em abundância, empilhados, acumulados nas imensas descrições inúteis. E não me venham com "sensação de vazio", com "produzir um efeito de inutilidade ou nulidade", com conversas de "o puro gozar a vida", "o direito ao ócio", para tudo isso e muito mais já nos basta a vida. Esse "efeito de real" artificial e antinatural, essa verossimilhança fácil, forçada, descritivista, só existe por uma falta de natureza no espírito.

41. Gostaria de avisar que vivemos num tempo onde é preciso à ficção se afirmar ou se (re)inventar, é preciso haver ficção. Para tal se faz indispensável termos pelo menos um OLNI (Objeto Linguístico Não Identificado) e um OLNA (Objeto Linguístico Não Autorizado). Problema sério é quando acontece um OLNInt (Objeto Linguístico Não Interceptado), passando sobre nossas cabeças, ou sob elas, sem o notarmos.

Diário - 2017/05/15

22. As pessoas dizem que a guerra é parcialmente boa porque produz tecnologias dadas suas urgências e demandas. Isso é, tacitamente, uma forma de justificar a guerra e engolir os horrores passados e presentes. Mas isso é falso a partir de hoje: para produzir essa tecnologia inovadora é preciso criatividade, como a nossa é muito limitada e desestimulada, não é um ponto justificado, apesar dos pesares. Precisamos desenvolver tecnologia sob outro paradigma, debaixo doutra orientação, levados por algum outro sopro ou impulso que não o que está dado.

23. Diz o professor: "(...) ainda não lhe era completamente claro (...)", bem, é óbvio, não é, meu querido? Se assim fosse, ele ficaria cego!

24. Se não há fora do sistema, então há um ponto de vista privilegiado intrínseco ou extrínseco, não importa, que justifica o estudo daquele sistema e não outro. Isso exigiria, contudo, uma eternização do sistema, anterior ao próprio homem, eliminando qualquer livre-arbítrio, pois assim o sistema não seria gerado ou produzido ou construído ou o que for, mas isso demanda outra pergunta: por que o homem, o humano, e não outro animal ou ser vivo aderiu ao sistema? E, se outros aderiram, então é uma biologia/economia universal? E a matéria não-viva, onde se situa? Seria absurdo pensá-la volitiva e viva, por mais fascinante seja o absurdo, há limites – até porque, se ela tem volição, ela é viva, então não há motivo para chamá-la não-viva.

25. São Paulo não tem "uma vida cultural intensa", tem apenas muitos museus. É muito diferente. Até porque balada não é vida cultural, não fode, porra!

26. Relacionar-se com o não-dito a partir do dito é ser materialista, ao contrário do que enchem o saco os analistas de discurso "de linha francesa." Muito diferente é o que eles clamam e fazem, que é partir das conceituações teóricas e então olhar, com essa lente altamente distorcida, a matéria (que eles, já mostrando sua ingenuidade, confundem com empiria). Materialismo não é empirismo. Para isso, contudo, não é preciso esquecer o místico, o mágico, o alquímico, isso é empirismo ingênuo de novo, materialismo é muito mais, é muito outro.

27. Ao contrário do que quis Descartes, não há ideias claras e distintas, todo pensar é confuso, como dizia Bataille.

28. "Toda tradução é uma traição" – tá, legal. A questão não é a semântica, mas o significante, é nesse nível que permanece o intraduzível. As vezes uma proximidade entre línguas traz algo interessante, ajuda, mas, repito, não é o significado, é o significante. Pense em Schein e Shine, por exemplo.

29. Quando havia espíritos nas coisas, havia uma injunção moral, as coisas nos interpelavam. Quando desrealizamos tudo, as coisas emudeceram e nós falamos demais. A ética faliu.

30. Quando o Ocidente uniu poder e dever, tudo faliu. Os "movimentos de minorias" se esforçam tremendamente em colar essa união, vide como uma conversa de WhatsApp ou Facebook pode ser levada por uma mulher a uma delegacia e pode produzir uma acusação formal contra um homem, que passará a ser visto sob péssimos olhos como agressor, mas uma agressão efetivamente, como a traição, de nada serve num tribunal. O ato é definidor. A potência é mera plasticidade, não é já a forma constituída, dada, o datum. Relembremos o apóstolo dos gentios: "tudo posso, mas nem tudo me é lícito."

Diário - 2017/05/13

9. Interpretações místicas das diversas áreas quânticas evidenciam um mau-caratismo tremendo e um desentendimento profundo e enraizado sobre o que é ciência e como ela funciona. Muito provavelmente baseado numa noção vulgar e cotidiana do que é ciência. Engenharia não é ciência, por sinal.

10. O problema do mal é extremamente interessante. Tenho minhas dúvidas se poderá ser respondido numa pura filosofia como querem os hegelianos espalhados por aí, mas é deveras muito interessante compreender por que diacho há mal e não bem quando este último resolveria uma gama tão exorbitante de problemas que podemos chamar "tudo" sem sofrer grandes críticas.

11. Há uma balela difundida de que a arte produzirá "senso crítico" (seja lá que diabo é isso). É falso. Eu mesmo sempre fui cercado das artes e elas não produziram esse efeito em mim. Minha inquietude, por outro lado, sempre foi crucial para as capacidades mais elevadas do espírito. Não matar as inquietações, alimentá-las, resolvê-las, conhecê-las, manipulá-las, manuseá-las, isso é crucial para um pensamento bem formante e bem formado. La ideologia está en todo. Em sua vasta maioria, quem fala de educação pouco ou nada sabe sobre o que diz, tem ideias rasas e medíocres. Essa conversa bastante corrente de que só é uma educação ("verdadeira" está aqui implícito) aquilo que está de acordo com certos valores e crenças (uma espécie de humanismo revisitado e muito menos potente ou interessante que o renascentista), é na verdade uma religiosidade do e no homem. Educação é tudo aquilo que ex ducere, para bem e para mal. Não saber é também uma forma de saber, um saber. Esse neo-kantismo revivido com sua balela de "educação dos sentidos" dá muita prosa, mas pouca poesia.

12. Quando as pessoas têm suas crenças abaladas, elas vão correndo ao ad hominem sutis, se assim posso chamá-los. Em que consistem? Geralmente sua primeira forma é o argumento oftalmológico: "você tem que ver que (...)." Outra forma famosa é (em discussões onde a religião está de fundo ou pauta): "você diz isso porque não crê, você não entende, você tem que crer".  É tão desesperador ter suas crenças movidas, realocadas, precisar mexer nelas? Não bastam quase três séculos de arte?! A ficção sempre lidou com como nossas crenças precisarem de revisão constante, a trilogia de Édipo é toda sobre isso! Sobre como é preciso considerar a si mesmo enquanto objeto da falha. Não somos os agentes do verbo, somos seu objeto.

13. A metalinguagem é sempre linguagem e nunca meta. Isso não se dirige aos gramáticos, eles sempre souberam disso e nunca esconderam; dirige-se aos "filósofos" e seus wet dreams. A ideia de uma "semântica universal" é uma mentira terrível. Não porque haja algo intraduzível, o problema não é esse, mas porque o universal é a falência do pensamento.

14. O problema do verdadeiro (membro de um grupo). Os marxistas se debateram por muito tempo sobre isso; sintomaticamente os religiosos também; os movimentos "de minorias" pós-modernos também – é realmente muito curioso notar como essa implicância vem com força da esfera religiosa, sinal de algo problemático, para dizer o mínimo. Minha experiência é de que os (membros) mais interessantes ficam numa espécie de "margem no meio" (A terceira margem do rio, Guimarães Rosa?), num limiar realmente peculiar, nem dentro, nem fora, senão foraclusão, são e não são parte (não mais Shakespeare, mas já Murilo Mendes). Eu tento herdar (o verbo é proposital) o melhor de todos os mundos, sempre sem perder de vista muita coisa importante, e.g. Lacan é muito útil como ferramental de comentário cultural contemporâneo ocidental, uma espécie de teoria da antropologia ocidental, mas não se pode deixar "enfeitiçar pela linguagem" extremamente especializada dele como divina ou mágica ou mística, é preciso criticá-la também, utilizá-la, sujá-la com a vida e o teste da experiência, assim ela mostrará seus pontos fortes e fracos e nisso teremos uma versão mais convincente, mais sólida e mais potente. Cansam-me lacanianos e marxistas alike repetindo fórmulas e definições que, em verdade, nada definem, como se estivessem dizendo alguma verdade muito profunda para os "reles mortais" (estes mesmos que criaram e mataram deuses, mal sabem eles), sem perceber que, de fato, só estão sendo homens de seu tempo e vivendo a pura superfície, repetição assêmica a esta altura. Palavras vazias são palavras vazias, é uma sabedoria popular no melhor dos sentidos, refinada por séculos e milênios pelo teste da vida.

15. Não se esqueça a lógica e a ilógica, mas é necessária e premente uma alógica – só aqui se situa qualquer verdade relevante, aquém e além da língua, qualquer sorte de teo-a-logia.

16. A ideia de gênio seria propriamente uma ideia romântica (não necessariamente liberal ou burguesa). Sua versão propriamente socialista seria aquela obra como culminação das forças sociais, produtivas, históricas, culturais, etc., acumuladas naquele ponto (punctum?) de tal forma que se propagassem adiante no espaço-tempo (Eugenio D'ors?). Porém, isso gera um problema de origem: as primeiríssimas obras teriam sido resultado da influência das pedras, do sol, dos ventos, das bactérias? (Até podem ser, mas que diacho isso quer dizer anyways?) Talvez não o gênio per se, mas deve-se recuperar (muito mais que conservar) uma noção minimamente coerente de autonomia, sem ceder, obviamente, aos deslizes e cegueiras do projeto estético (esteticista, podemos dizer), uma autonomia retornada da UTI, e como ela já não lembra em quase nada sua velha forma, chamemo-la: an-autonomia.

17. Tudo aquilo que questiona o fundamentum in re das coisas, isto é, o fundamento das/nas coisas, por dialética (ou seja, por não pensa vulgarmente), também questiona as coisas que fundamentam.

domingo, 14 de maio de 2017

Uma frase de Antonio Negri

O capital não é uma essência independente, um Leviatã, mas sempre uma relação produtiva de exploração.

Trecho de Walter Benjamin sobre As Afinidades Eletivas, de Goethe, com destaques

Trecho de Walter Benjamin sobre As Afinidades Eletivas, de Goethe, com destaques:

"A bibliografia disponível sobre criações literárias sugere que o procedimento minucioso em tais investigações deve ser mobilizado mais em função de um interesse filológico do que crítico. (...) A crítica busca o teor de verdade de uma obra de arte; o comentário, o seu teor factual.[3] A relação entre ambos determina aquela lei fundamental da escrita literária segundo a qual, quanto mais significativo for o teor de verdade de uma obra, de maneira tanto mais inaparente e íntima estará ele ligado ao seu teor factual. Se, em consequência disso, as obras que se revelam duradouras são justamente aquelas cuja verdade está profundamente incrustada em seu teor factual, então os dados do real[4] na obra apresentam-se, no transcurso dessa duração, tanto mais nítidos aos olhos do observador quanto mais se vão extinguindo no mundo. (...) Pode-se comparar esse crítico ao paleógrafo perante um pergaminho cujo texto desbotado recobre-se com os traços de uma escrita mais visível, que se refere ao próprio texto. Do mesmo modo como o paleógrafo deveria começar pela leitura desta última, também o crítico deveria fazê-lo pelo comentário. E inesperadamente surge-lhe daí um inestimável critério de seu julgamento: só agora ele pode formular a pergunta crítica fundamental, ou seja, se a aparência[5] do teor de verdade se deve ao teor factual ou se a vida do teor factual se deve ao teor de verdade. Pois na medida em que se dissociam na obra, eles tomam a decisão sobre a imortalidade dela.

[3] Os termos "teor de verdade" e "teor factual" correspondem no original a Wahrheitsgehalt e Sachgehalt. O substantivo masculino Gehalt pode ser traduzido também por "conteúdo", mas esse corresponde mais propriamente a Inhalt, o conteúdo objetivo – assunto, argumento, acontecimentos – de uma obra literária. Gehalt, por sua vez, conota também a visão de mundo ou os valores envolvidos na obra, razão pela qual optou-se aqui por "teor". Contudo, quando empregado no plural ou em outros cotextos, Gehalt foi traduzido também como "conteúdo".

[4] A expressão "dados do real" corresponde no original ao substantivo plural Realien, conhecimentos objetivos, "fatos" ou "coisas" da realidade incorporados à obra de arte.

[5] Empregado inúmeras vezes ao longo deste ensaio, o termo "aparência" corresponde no original a Schein, substantivo masculino que também significa "brilho." Do mesmo modo, o verbo Scheinen pode ser traduzido tanto por "parecer" ou "aparentar", quanto por "brilhar", "reluzir." Ao campo semântico de Schein pertence, portanto, não só a conotação negativa de "ilusão, aparência enganosa", mas também a de manifestação sensível, fenomênica, relacionada a Erscheinung, isto é, "aparição" (phainomenon, em grego).

Um trecho de Harold Bloom, com destaques, apropriado para o pensamento fragmentário

Um trecho de Como e por que ler, de Harold Bloom, com destaques (feitos por mim), apropriado para o pensamento fragmentário, ou um elogio do conto:

"Geralmente, as peças teatrais imitam ações; o mesmo não se aplica ao conto. Eudora Welty, nos dias de hoje, provavelmente, a melhor contista norte-americana, comenta que, na verdade, os personagens de D. H. Lawrence "não se comunicam com naturalidade, não conversam entre si; não falam pelas ruas, mas jorram como fontes, brilham como a lua, rugem como o mar, ou calam-se como as pedras perversas." Lawrence é um visionário extremado, mas a eloquente observação de Welty se aplica a todas as grandes histórias, que devem encontrar a sua própria forma, seja na tradição de Tchekhov ou Kafka. Nos melhores contos, a realidade torna-se fantástica e a fantasmagoria torna-se real e rotineira. Talvez seja por isso que, hoje em dia, tantos leitores evitem as coletâneas de contos, preferindo adquirir romances, mesmo quando os contos apresentam qualidade bem superior.
O conto favorece o tácito, compele o leitor à ação, a discernir as explicações omitidas pelo autor. O leitor, conforme já ressaltei, precisa proceder com cautela, com propósito, e tentar ouvir com a mente. Tal procedimento possibilita ao leitor, por assim dizer, perscrutar o interior dos personagens, ao mesmo tempo em que os ouve falar. O leitor deve pensar nos personagens como se estes fossem seus, e buscar as várias implicações da história, em vez de limitar-se a ouvir o narrador discorrer a respeito das mesmas. Ao contrário do que ocorre com a maioria das figuras que habitam romances, com personagens de contos a evidenciação (ou não) de determinados fatores depende, em grande parte, da capacidade de o leitor perceber as indicações sutilmente fornecidas pelo autor.
De Turgenev a Eudora Welty, e mesmo depois de Welty, contistas têm evitado fazer julgamentos de ordem moral. George Eliot foi eminente romancista, e Middlemarch, Um Estudo da Vida Provinciana (sua obra-prima) contém inúmeros e fascinantes julgamentos dessa natureza. Mas os contistas mais talentosos são tão vagos com relação a julgamentos de valor quanto com relação à continuidade da ação, ou aos detalhes da vida pregressa dos personagens. Nos melhores contos, cabe ao leitor decidir a relevância de quaisquer julgamentos de ordem moral, e, com efeito, pronunciá-los.
O leitor obtém grandes benefícios das elipses, geralmente plenas de significado, encontradas tanto na vertente tchekhoviana quanto na borgiana-kafkiana. Ao mesmo tempo, é preciso cautela na detecção de simbolismo, mais ausente do que presente nos grandes contos. Mesmo o grande conto de horror – O Horla , de Maupassant, não faz do Horla elemento explicitamente simbólico, embora eu tenha sugerido anteriormente a possibilidade de uma relação entre a loucura de Maupassant, causada pela sífilis, e a obsessão pelo Horla observada no protagonista anônimo. Até certo ponto, o simbolismo é tão alheio a um conto de boa qualidade quanto as alusões literárias: Nabokov é a grande, a maravilhosa exceção, nesta minha tentativa de formular uma Lei de Bloom para o conto. Nabokov recorre, frequentemente, à alusão, mas, raramente, ao simbolismo. O simbolismo pode comprometer o conto; o romance dispõe de espaço e tempo suficientes para revestir os símbolos de uma aparência naturalista, mas o conto, necessariamente abrupto, tem dificuldade em evitar que os símbolos pareçam inoportunos.
Concluo este epílogo sobre como e por que ler contos, sugerindo que as vertentes  Theckhov-Hemingway e Borges-Kafka  não são excludentes. Buscamo-las por motivos distintos; se a primeira satisfaz o nosso desejo de realidade, a segunda mostra-nos a ânsia que sentimos pelo que se encontra além da suposta realidade. Claro está, apreendemos cada vertente de modo diverso, buscando a verdade, em Tchekhov, e o avesso da verdade, em Borges. O ato do Gogol criado por Landolfi, ao destruir a esposa-boneca de borracha, afeta-nos tanto quanto o momento em que o estudante de Tchekhov detém-se diante da fogueira onde se encontram duas mulheres infelizes e lhes narra a história de São Pedro. A energia que caracteriza a nossa reação apresenta, em cada caso, uma natureza distinta, mas a intensidade é a mesma."

Diário - 2017/05/14

18. A "humanização" dos heróis é um erro tremendo pelo qual os quadrinhos dos anos 1990 e 2000 ainda têm de pagar o preço. Algumas literaturas não ficaram atrás e degeneraram também. É alarmante como se confundiu "humanização" com mera exposição do personagem em cenas corriqueiras; em especial houve (e hoje ainda resiste forte) sexualização (que é sintomática, pois já vivíamos então uma sociedade pornográfica). A queda e o desaparecimento de modelos são fatais num mundo onde a ética já é conturbada e confusa, afetada e deficiente. Talvez os heróis fossem um dos grandes pilares e trunfos de áureos tempos idos – todo mito tinha heróis desumanizados (assumindo esse sentido vulgar e estúpido de "humanização" dos personagens, mas não só) e eles produziam exatamente essa força social e íntima capaz de impulsionar adiante sempre e tanto. Quando se dizia "a história é feita de heróis" (e notadamente não "por heróis") era uma sabedoria imensa manifesta, pois os heróis eram capazes de enraizar ou desenraizar certas coisas, mexer na terra profunda onde as raízes realmente estão, penetrar e caminhar entre essas placas tectônicas do ser, conseguiam sujar-se com dignidade e eram capazes, coisa hoje raríssima, de herdar a tradição. Tudo a eles antecedente por eles era herdado, uma lição e tanto!

19. Não há algo como "falar objetivamente" e o problema obviamente não é 'falar', mas 'objetivamente'. Se você fala, de princípio já não há objetividade. Seja pela ausência da possibilidade de um objeto qua objeto (como o Cours saussureano prova) ou mesmo pelo fato óbvio de que a língua já não é o mundo acontecendo, senão língua acontecendo, na mais benevolente concessão, no mundo.


20. Só uma democracia an-árquica é uma democracia real, pois ela é "sem arquia", sem arché, isto é, sem origem, sem passado, portanto plenamente presente. A arte há muito nos ensina que a representação é sempre desigual e indigna. Por isso a democracia tem se tornado "mediocracia", governo da mediocridade. A arte se mostrou de acordo com Lacan e com outros, (re)lendo Saussure, posto há um desequilíbrio entre representante e representado, onde o primeiro, à revelia do propaga(ndea)do pelos "filósofos", mostra-se muito mais focal que o segundo. "Sem passado, sem origem" deve ser desdobrado como fruto de uma ruptura radical com todas as formas estabelecidas e/ou tradicionais, uma verdadeira revolução.

21. É como a escultura africana: você só conhece o deus quando o coloca em seu rosto (máscaras de pedra ou madeira) e se torna ele por um instante, confunde-se com ele na dança, nem mortal, nem imortal, outra cois'ainda. Quer dizer, esse gesto de manipular, manusear, tatear, tocar, sujar um pensador e seu pensamento, é isso que nos torna íntimos dele e nos faz extrair as maiores potências e vislumbrar os maiores defeitos. Louvar à distância, kantianamente, museologicamente, é uma desonra, um desrespeito, não põe à prova o pensamento e seu pensador, não lhes extrai o teor factual e o teor de verdade ali acumulados, só os deixa museografados, arquivados.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Diário - 2017/05/12

5. É difícil definir o inquietante (das Umheimlich) em termos metapsicológicos. Infinitamente mais fácil é esta (e qualquer outra) empreitada (explicativa) em termos particulares (em verdade particularistas). É sempre fácil partir de si e permanecer nessa esfera, não sair de si, remeter e retornar a si (linguagem egocêntrica de Piaget?). Outra facilidade é pensar em universais: são infinitamente abstratos, portanto não servem para nada, mais ficcionais que a própria ficção (como entendida pelo vulgo). A gigantesca – maior que o próprio infinito do universal e mais detalhada que o infinitesimal do particular – imagem situada no meio é o que interessa. Mas o que é esse meio? Que imagem é essa? É aquele conjunto exorbitante de coisas interessantíssimas chamadas por Marcel Mauss de cultura. É (em alguma medida e somente em alguma medida) o que os (melhores) marxistas chamaram totalidade. É o Grand Verre de Duchamp, a imagem dialética de Benjamin, a modernidade de Baudelaire.

6. Fragmento de diálogo: "Sempre supus que beijar de olhos abertos era um mau-caráter. Sinal de ausência da entrega exigida pelo verbo." E outro trecho: "caminhar na praia é genial."

7. Vinculaço (vínculo + laço: double bind). É imemorial tudo aquilo que é abrangente e antigo o suficiente para ser arcaico e mítico, isto é, originário e verdadeiro. É preciso dialogizar a imagem e imaginar a linguagem. Dizer o indizível e imaginar o inimaginável. Tato e toque são limites fronteiriços dum mesmo ato ou gesto, como se queira chamar. A maior parte dos autoproclamados marxistas são estúpidos em suas segregações (porque em verdade é só isso que fazem): dialética é parte da metafísica (sim, não é seu wet dream da tal "totalidade", seja lá que porcaria é isso). Só compreendeu deveras a aufhebung hegeliana, ou seja, toda sua dialética (nada tem a ver com a "síntese" fichteana), quem compreendeu a imagem dialética benjaminiana. Estes meus tênis têm muito cimento das mesmas calçadas.

8. Hoje, um romance qualquer lida com um fragmento de tempo, uma fração de instante, aquilo que cabe numa ampulheta, numa fotografia, num vine, num vídeo qualquer, numa selfie, numa memória a ser arquivada, portanto, num arquivo, numa extensão (esse termo é sintomático da nossa condição de ciborgues). E algumas pessoas – sem saber, a partir disso – tratam outras como se ninguém mudasse, como se o tempo inexistisse ou não agisse (sobre a redução da importância do tempo e a sobrevalorização do espaço [superficializado, pura superfície]: cf. a produção recente de journals de arquitetura com excelentes reflexões). As narrativas antigas giravam ao redor da transformação, da mudança, da variação, do diferimento produzido no e pelo tempo sobre um herói, um personagem, um conjunto de valores que se enraizava em alguém, ou que tomava corpo e se construía, e tudo isso fazia sentido afinal, todo mundo crescia, envelhecia (vide o bildungsroman dos alemães, o "romance de formação"). É por isso que os romances hoje são tão breves em termos de temporalidade cronológica ou absoluta, toda uma vida deve caber num acidente de carro, numa noitada (que expressão medonha!), o "amor da (minha) vida" deve durar até a próxima festa open bar. Exatamente porque a tendência a mudar se perdeu, porque as pessoas pouco ou nada mudam, é que tratam umas às outras como essências eternas imutáveis, invariáveis, e elas mesmas, que reclamam da invariabilidade dos outros, também se recusam a mudar. Por isso é sintomática a proliferação dum discurso como "me aceite como eu sou ou vá embora", porque você pode mudar e eu também, todos podemos, então isso aí é coisa de encostado, de preguiçoso, de quem vive numa hipocrisia de querer um mundo melhor, mas não querer tornar-se melhor para o mundo, ou seja, de quem não quer realmente um mundo melhor, só quer no discurso, da boca pra fora, só quer pra ser aceito, pra fazer imagem, pra ser bem visto (e a visão, essa visão pobre, parca, sem profundidade e sem tato, absolutamente nada dialética, está muito em voga, está disseminada, proliferada como uma doença). Daí o mundo parece estar eternizado num "fim da história", num "já-sentido", etc. e tal, porque as próprias pessoas, que fazem a história todos os dias em suas vidas, como as células todas juntas com alguma coordenação e algum caos fazem a vida (e a história, mesma coisa,) do corpo, não fazem nada diferente, não mudam. É óbvio que o mundo não mudará se ninguém mudar.

Diário - 2017/05/11


2. Talvez seja necessária uma experiência extrema, um verdadeiro beijar os limites da vida, para se pensar profundamente sobre qualquer coisa. É um pensamento menos alegre, mais penoso, esforçado, as vezes até melancólico (como já anunciou Aristóteles e retomou Benjamin), mas é certamente mais feliz, mais potente – é um ver com maior clareza as coisas íntimas e do mundo. Eu vi a extrema curva do caminho extremo duas vezes pela mão de outros e compreendi profunda e verdadeiramente a importância ética da e na vida. Sem ética não haveria vida, nem sociedade, nem cidade, nem homens, nada. A mão do homem, e as suas elucubrações, produzem uma ampli(fic)ação do que sente aqui dentro – a enxada é um aumento da mão em concha; a colher, da mão que come; as falsas necessidades do capitalismo, das paixões e vontades de se sentir mais vivo que vivo. A mediocridade passa por extremo e tudo se acoberta sob os lençóis do vulgar, contudo isto não me basta, vi a morte perto demais. É preciso ser outra coisa que não isto. Sempre e tanto.

3. O que é um ambigrama? Por que ele é um bom paradigma de leitura? Viva Vaia, de Augusto de Campos, vira e mexe retorna, como o (retorno do) recalcado (seria a vaia viva?). "Se vocês forem em política como vocês são em estética, o país está perdido", gritava Caetano Veloso num festival de competição de canções em 1968.

4. A verdade (aquela verdade cotidiana, vulgar, entendida pelo povão) só é possível na metafísica, no mito. A cientificidade se dá à dúvida constantemente, por isso a filosofia não pôde sair incólume da invenção da (filosofia da) ciência, daí sua corrente autorreferencialidade improdutiva. Ela teve de se curvar ao poder da dúvida – Hume venceu. É hora de virar o jogo.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Diário - 2017/05/10

1. Hipótese: as pessoas se contentam com música medíocre porque têm emoções medíocres. Daí qualquer verso idiota servir para expressar "as mais profundas emoções", qualquer trocadilho medíocre, duas rimas simples, põem a nu "o (novo) amor da (minha) vida" (amor renovado a cada trimestre, vale dizer, quando não a cada balada). Há patente esforço em esvaziar a experiência interior (sempre parcialmente fracassado) e reduzir a experiência exterior à pura superfície. Há uma confusão infeliz difundida, enraizando-se mais a cada dia, entre positivo (otimista) e alegre (eufórico, hedonista) – traço óbvio do abandono da ética (moral) em favor da "ética" (mera descrição). Eu não lido com estética porque não me meto com essa babaquice filosófica, nem com o que está posto hoje (Lipovetsky, Baudrillard, boas análises, inclusive).

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Proposta do LiraMundo

1.       Pensar a poesia como linguagem da voz. Tomando como ponto de partida para a discussão e debate aquilo que Giorgio Agamben propõe em A linguagem e a morte, na esteira de Foucault e Derrida, como diferença entre phoné (voz) e logos (linguagem). Contudo, a voz reivindicada por Giorgio Agamben não é a voz de Aristóteles. Caberia pensá-la como algo mais próximo ao ato de fala, em oposição à linguagem como logos (sistema abstrato, langue). Portanto, dessa distinção derivam dois modos de entender a poesia: voz da linguagem (isto é, como representação de um sistema absoluto, do humanismo hegeliano, em que a negatividade é apenas algo que deve ser mantido à distância, reverenciado, como precursividade fundadora e instituidora, o nomosem que a voz é mero suporte do lirismo). Ou seja, por um lado se propõe questionar a compreensão da poesia pensada como metáfora e, de outro lado, questionar a poesia como linguagem da voz, isto é, como a-teologia ou teo-a-logia, segundo demostrou Giorgio Agamben sobre Mallarmé em A potência do pensamento, em que a poesia assumiria os traços da animalidade pós-histórica (Kojève) e, nesse sentido, o poético seria aquilo em que arcaico e atual se reúnem enquanto traços, restos, indícios, sobrevivências, anomalias selvagens. Dessa maneira, estaríamos discutindo um conceito de contemporâneo para a poesia.

2.      Ainda no âmbito das discussões sobre o contemporâneo na poesia, é importante retomar a reflexão sobre a indagação a respeito do “eu”, dos pronomes e, nesse ponto, tanto Kojève quanto Foucault oferecem-nos pistas para pensar o poético. Hegel dirá que o poético é a passagem da sensação, o sentimento, à consciência. Com Kojève, no entanto, o poético seria o ensaio de pensar uma voz sem negatividade (segundo Agamben) entre o Absoluto (Hegel) e o Ereignis (Heidegger). Entretanto, em nossa proposta de trabalho não abrimos mão de pensar também a noção desenvolvida por Kojève de que as relações entre Amo e Escravo (entre Kant e Sade, para dizer com Lacan) não são mais do que desejo de um desejo. E esse désir de Kojève (desiderium, um saber a partir das sidera, da poeira de estrelas, da constelação benjaminiana) não é Nada (néant) como negatividade ainda dialética, mas é negatividade tomada como neutralidade do Real, que reverte sempre sobre o sujeito e lhe pergunta a partir de sua imobilidade por que ele diz o que diz.

3.      A poesia como memória da linguagem. Numa entrevista radiofônica concedida a André Gillois, em 1951, Georges Bataille dizia que a poesia nasce da desordem do pensamento, porque há algo de profundamente poético em toda desordem do pensamento. A partir do conceito duchampiano de infraleve, poder-se-ia traçar, portanto, uma tangente teórica que viria até a obra de Rauschenberg que, segundo Branden Joseph, postula uma ordem aleatória (JOSEPH, Branden W. Random Order: Robert Rauschenberg and the Neo-Avant-Garde. Cambridge, MA / London. October Book, MIT Press, 2003). Entre outras aproximações, Joseph vincula o interesse de Rauschenberg pelas performances com os escritos de Antonin Artaud, em particular, O teatro e seu duplo, apresentado como conferência no Black Mountain College, o centro de renovação da arte norte-americana nos ‘50, orientado por M. C. Richards, e que Rauschenberg pôde ter assistido. Que o tenha feito ou não é irrelevante de fato, porque o que interessa, em termos de pensar uma estética inoperante, é construir constelações e captar a energia que delas emana. Porque uma das questões que avultam, no processo de anautonomização da arte, é precisamente perceber que aquelas experiências que, originariamente, constituíram experiências-limite da elite intelectual, acabaram por transformar-se, atualmente, em experiências de massa, e como já apontava Giorgio Agamben, uma Stimmung de massa já não é uma música memorável: é tão somente uma enorme balbúrdia e confusão, já que o homem contemporâneo é o primeiro a não ter Stimmung, isto é, vocação. Não é um dado alvissareiro, certamente, mas é algo que revela, porém, a condição exposta do contemporâneo, segundo Giorgio Agamben em A Ideia da Prosa. Portanto, aceitando que o conceito de Stimmung está relacionado com Stimme (voz), e ainda que o verbo stimmen significa “afinar um instrumento”, e por extensão, “estar certo”, “estar no lugar adequado”, o alvo não seria nos empenharmos, à maneira de Roberto Schwarz, no sentido de fixar Que horas são?, mas no de provocar uma desordem no pensamento e conceber as Stimmungen já não como um continuum temporal, senão, como tons, atmosferas, fricções que se processam conforme diferenças gradativas e matizes infraleves que, de certo modo, supõem uma contestação da linguagem descritiva.


4.      Pensando, sobretudo, ainda no “inimigo” da poesia, o logos abstrato, interessa-nos também retomar Henri Michaux, em Par des traits (misto de grafismos e reflexões “casuais”), a partir do qual se reflete/sonha sobre o aquém e o além da língua. Ele solicita uma “língua modesta, mais íntima, […] uma língua sem pretensão, para homens que sabem que nada sabem.” A resistência da poesia, nesse sentido, seria que a poesia resiste ao romance, porque não deseja ter a pretensão de nomear sujeitos. Os vultos da poesia não são necessariamente protagonistas, são figurantes.