sábado, 25 de janeiro de 2025

Como “azul” transforma “casaco”

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A linguagem ocorre de maneira complexa e dinâmica: força que descreve o mundo e molda-o continuamente em nosso imaginário. Exploremos como a relação entre palavras, como em um sintagma tão simples quanto casaco azul, exemplifica a multidirecionalidade da linguagem e o papel da imaginação no ato de interpretar e construir sentidos.

Imagine um casaco. Antes mesmo de especificarmos suas características, o substantivo casaco já provoca uma imagem mental. Essa imagem pode variar dependendo da cultura, experiência ou até das circunstâncias em que se leu a palavra. Agora, adicione o adjetivo azul. A imagem transforma-se! Introduzir o adjetivo dirige o cinema da imaginação, guiando o fluxo interpretativo para o específico. Esse fenômeno, por simples que pareça, revela uma dimensão da linguagem: palavras não apenas apontam para significados fixos, como também criam trajetórias, desdobramentos de suas interações, conduzindo nossa atenção e reorganizando nossas representações mentais.

Quando o substantivo “casaco” aparece, carrega consigo ampla abertura semântica: pode ser de lã, de couro, vermelho, preto, até transparente; constitui um ponto de partida genérico, um conceito que permanece pouco determinado. O adjetivo, nesse contexto, atua como vetor semântico, restringindo e qualificando essa abertura: “azul” inclina o sentido de “casaco” para o mais específico no campo semântico, eliminando possibilidades, simultaneamente, enriquecendo a imagem mental. Como numa coreografia de significados, o adjetivo modifica o substantivo, reorganizando como imaginamos o mundo descrito, refazendo os caminhos interpretativos.

A ação do adjetivo “azul” sobre o substantivo “casaco” ilustra como a linguagem contém um processo dinâmico de direcionamento da imaginação. Esse direcionamento não é passivo: exige a cooperação ativa do interlocutor. Quando ouvimos ou lemos “casaco azul”, nossa mente constrói uma imagem incorporando elementos da experiência pessoal (como memórias de casacos azuis que já vimos) e do contexto linguístico e extralinguístico em que o sintagma ocorreu.

Embora o exemplo “casaco azul” seja simples, a multidirecionalidade da linguagem manifesta-se em níveis mais complexos, especialmente em textos literários. Considere-se uma frase como:
O casaco azul, tão gasto pelo tempo, guardava memórias de dias ensolarados.

A adição de “tão gasto pelo tempo” e “guardava memórias de dias ensolarados” expande o imaginário em várias direções: o desgaste pelo tempo de uso e a sugestão de uma história passada para o objeto, além de sua antropomorfização (um casaco, a rigor, não guarda memórias, mas seu dono e usuário recorda-se de algo ao vê-lo ou vesti-lo). A linguagem, nesse caso, desloca o azul em um campo semântico rico e interconectado.

O poder transformador das palavras. No caso de “casaco azul”, observa-se como uma simples adição pode alterar a trajetória interpretativa e moldar a imaginação do interlocutor. Essa dinâmica, além da mera descrição, revela como a linguagem (re)direciona-nos e continuamente (re)cria o mundo ao nosso redor.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Memória e lirismo, das agruras do amor

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Dos tempos em que se relacionar ainda era uma bela arte, o eu lírico diz:

Gosto de ti apaixonadamente,
de ti que és o início e os infinitos,
de ti que me trouxeste a natureza
do paraíso em tua presença breve,

com tua linda voz de água corrente;
de ti que tens da Vida a persistência
das coisas duradouras; da beleza
teu é o único corpo concedido

à Terra e enraizado nos enigmas
do sonho. Grande estátua das vontades,
bordão a amparar minha cegueira,

gosto de ti, amor, de ti, mulher,
para sempre a primeira, desde sempre
a última e a mais bela.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Arte, entretenimento e sensibilidade no mundo contemporâneo

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A hegemonia da indústria cultural molda profundamente nossas experiências e percpeções. A produção cultural em massa (de massa e para a massa) — o entretenimento — domina os espaços de lazer, informação e até mesmo reflexão. Entretanto, essa hegemonia não é neutra: atua como força que forma — ou deforma — nossa sensibilidade, determinando como nos relacionamos com o mundo, com os outros e conosco mesmos.

O entretenimento, como manifestação cultural predominante, simplifica as experiências, traduzindo a complexidade da realidade em narrativas acessíveis, previsíveis e reconfortantes. Em contrapartida, a arte resiste a essa tendência. Em vez de uniformizar e amortecer a percepção, a arte se posiciona como espaço de resistência, instigando-nos a confrontar a profundidade e a opacidade da realidade que nos cerca, sua não obviedade. Essa tensão entre arte e entretenimento não é meramente estética; trata-se de uma questão ontológica e política, que afeta a maneira como compreendemos o mundo e nosso lugar nesse.

Como o entretenimento e a arte, enquanto forças culturais e simbólicas, moldam nossa sensibilidade e percepção do mundo? O que está em jogo não é apenas a escolha entre consumir um filme ou visitar uma galeria, mas como essas práticas definem nossa capacidade de sentir e interpretar a complexidade da existência. Lancemos luz sobre os mecanismos que nos insensibilizam e os que têm o potencial de nos despertar.

A lógica do entretenimento e a mentira da simplicidade

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Notas sobre a concepção da linguagem literária enquanto mimética

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A pergunta pelo que é literatura levanta problemas sérios dada a constituição histórica de conceber o literário como mimético, não ontológico. Que se conceba a literatura por suas características mais gerais, faz com que se a pense como um derivado ontológico, uma vez que se retém comumente a precedência de o que é presente, tomando-o como representado no literário. Aquilo que é, o ser-presente (a forma-matriz da substância, da realidade, das oposições entre matéria e forma, essência e existência, objetividade e subjetividade, etc.) distingue-se da aparência, da imagem, do fenômeno, etc., ou seja, de qualquer coisa que, apresentando-o como ser-presente, duplica-o, representa-o, e pode, portanto, substituí-lo e depresentá-lo. Portanto, há o 1 e o 2, o simples e o duplo. O duplo vem depois do simples; ele o multiplica como acompanhamento. Se lemos a literatura como Heidegger leu Trakl, torna-se necessário conceber um elemento da e na linguagem que não está precedido por nada. Entretanto, se linguagem (literária) tem por natureza a mimese, tratar-se-ia de um espelho originário, que representa algo nunca antes presente ou apresentado. Na interpretação heideggeriana algo fenomenológica do pensamento grego antigo, mimese significa, antes de imitação, a presentação da coisa em si, da natureza, da physis que se produz, engendra-se, e aparece (a si) como realmente é, na presença de sua imagem, sua face, seu aspecto visível. Mimese assim concebida concorda com a noção de verdade como desvelamento, alétheia, o mero aparecer de o que está presente em seu aparecimento.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A criação não fornece uma resposta ao lamento; em vez disso, alimenta o ímpeto para lamentar. O lamentador não estava presente com seu desejo no momento da criação. Isso se ilustra de maneira pungente na resposta de Yahweh às lamentações de Jó. A resposta de Yahweh não é uma declaração sobre o estado das coisas, mas uma pergunta: “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Faze-mo saber, se tens entendimento” (Jó 38:4). Essa pergunta implica que Jó não tem entendimento e não pode responder a Yahweh; também sugere que Jó não tinha lugar na fundação da Terra e que suas lamentações não tinham fundamento antes dessa criação, assim como seu desejo de voltar a um estado anterior à criação.

Além disso, a pergunta de Yahweh sugere uma noção mais profunda: com a criação, Yahweh criou um desejo que ultrapassa toda a criação porque busca retornar a um tempo anterior à criação. O desejo de Jó de não existir e de não desejar é mais poderoso do que o ato de Deus de fundar um mundo. Esse simples ato de desejar se liberta de sua condição de criatura, voltando-se contra todos os atos de fundação e todas as fundações em direção ao infundado. Isso permite que se torne um evento que existe no mundo de sequências de eventos bem fundamentadas e causais, mas que permanece sem fundamento e sem um Deus teologicamente concebido que funda.

As lamentações de Jó e o desejo ali contido apontam para um paradoxo essencial: o desejo de retornar a um estado de inexistência, um desejo de desfazer o ato fundamental da própria criação. Esse desejo está em oposição à fundação do mundo e a todos os atos subsequentes de criação. Representa uma forma de desestruturação, um desejo que transcende o próprio ato de criação, voltando-se contra esse.

A força absoluta desse desejo, esse desejo de retornar ao nada, destaca uma tensão fundamental entre a criação e o desejo de não ser. Isso sugere que, em todo ato de criação, há um desejo inerente de desfazê-lo, um desejo que antecede e ultrapassa a própria criação. Esse desejo é mais poderoso do que o ato de criação porque busca negar não apenas o mundo, mas o próprio ato de fundação que o trouxe à existência.

Assim, o lamento de Jó e o desejo final contido ali desafiam o ato fundamental da criação, sugerindo que o desejo de não ser, o desejo de retornar a um estado anterior à criação, é uma força mais profunda e fundamental. Isso ressalta a noção de que o lamento é motivado por um desejo que excede a criação, um desejo que busca retornar a um estado de in-fundação, um estado de in-existência que antecede todos os atos de criação e fundação.

A pergunta de Yahweh a Jó faz mais do que apenas sugerir que Jó não tem motivos para sua reclamação, também significa que a lamentação de Jó funciona independentemente do ato de criação de Yahweh. A lamentação de Jó dirige-se a Yahweh antes de sua criação, apelando para um deus antes de Deus se tornar um, essencialmente voltando-se para ninguém e para nada, buscando uma resposta de nada e de ninguém. A ausência de Jó no momento da criação implica não apenas que ele é uma criatura, mas que seu desejo de não ter sido criado poupa-o das decepções inerentes à criação, tornando desnecessária qualquer resposta divina.

A pergunta retórica de Yahweh, “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?” (Jó 38:4), reconhece que o lamento de Jó transcende os limites da criação; admite que o desejo de Jó de nunca ter existido, embora originado na criação e dependente dessa, é simultaneamente um evento que rejeita a própria premissa da criação, não precisando de nenhum fundamento ou apoio nessa. Esse desejo é fundamentalmente uma ocorrência do nada e uma vida conduzida por esse desejo existe antes de seu próprio início, no limite máximo do tempo, do espaço e da linguagem do mundo. É uma vida livre de ônus por si mesma, sem a compulsão de existir.

Os lamentos de Jó, portanto, não são apenas gritos pessoais de angústia, mas são os lamentos do próprio mundo. Por meio deles, o mundo volta a um estado anterior à sua criação, tornando-se um acontecimento irrefutável e inolvidável que existe livre dos princípios fundamentais da criação, consequentemente, livre de si mesmo. Essa percepção nega a necessidade de lamentação. Quando Jó entende essa implicação da pergunta de Yahweh, reconhecendo a natureza de seu próprio desejo, ele não encontra mais motivos para lamentação.

Essa interpretação sugere que a lamentação e o desejo de não existir são forças poderosas que desafiam o ato da própria criação. O desejo de Jó, embora paradoxal e irrealizável, representa uma rejeição fundamental da fundação do mundo, revelando um desejo profundo de retornar a um estado de nada. Esse desejo, existente à margem da criação, mina a própria essência do ser e oferece uma perspectiva que transcende as limitações do mundo criado. Ao compreender isso, Jó transcende seu sofrimento, indo além da necessidade de se lamentar, reconhecendo as profundas implicações de seu desejo e seu lugar na ordem cósmica.

O entendimento de Jó sobre a resposta de Yahweh revela que essa não pertence à esfera do conhecimento ou da cognição. Reconhecendo isso, Jó responde: “por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram demasiado maravilhosas e que eu não conhecia” (Jó 42:3). Essa troca de lamentação e resposta não se trata de compartilhar conhecimento, mas sim de renúncia mútua. Yahweh absolve Jó da responsabilidade pela criação, por sua vez, Jó absolve Yahweh da responsabilidade por suas tristezas. Eles reconhecem que seu diálogo não trata de transmitir informações, mas de libertar um ao outro de seus fardos interconectados.

O lamento representa o distanciamento entre o acontecimento do mundo e o próprio mundo. A única resposta significativa para o lamento é aquela que reconhece e efetua esse distanciamento, uma resposta que se distancia de todos os fundamentos. Essa é a resposta de um criador que reflete sobre o tempo anterior à criação, dirigindo-se a um lamento que opera fora das leis da criação. O lamento e sua resposta não convergem em um mundo comum; em vez disso, existem no pensamento de que não há mundo, comunicam-se não por se alinharem um ao outro, mas por contradizerem sua linguagem e todas as linguagens. Se a conversa daqueles transcende a manutenção das convenções, volta a um estado anterior ao início da linguagem.

Essa renúncia mútua entre Jó e Yahweh simboliza um profundo distanciamento existencial e linguístico. O lamento de Jó e a resposta de Yahweh operam em um reino além da linguagem e da compreensão convencionais, movendo-se em direção a um estado pré-linguístico e in-criado. Refletem uma verdade mais profunda que está fora dos limites da criação e do conhecimento, enfatizando as limitações; por fim, a transcendência da compreensão e da expressão humanas. Esse distanciamento ressalta a natureza fundamental do lamento como uma resposta às deficiências e limitações inerentes ao mundo criado, buscando uma resposta que reconheça e participe dessa transcendência.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Quintas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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A resposta à reclamação só pode deixar claro o que escapa à própria reclamação; não é uma resposta enquanto se apresentar como objeto de outras reclamações. Isso implica que só é uma resposta se não apresentar uma opinião, um julgamento ou uma explicação em que os motivos da reclamação, suas consequências ou suas implicações sejam tematizados, mas somente quando essa resposta tiver o caráter de um evento. Esse evento, se deve ser uma resposta, não pode ter o caráter de uma ação que segue a intenção de agir sobre a reclamação de forma consciente, controlada e com objetivos definidos — defender ou mitigar —, pois toda intenção pode ser superada, rejeitada e lamentada; portanto, não é o tipo de resposta que a reclamação demanda. Só pode ser uma resposta se atingir o alvo sem julgamento ou intenção e se atingir a reclamação enquanto ela não pode ser esperada, antecipada e defendida.

Como o horizonte da queixa é sempre um mundo e esse mundo é definido pelas apresentações e recusas de um nada que o constitui, a resposta deve ser não apenas um evento irrefutável, mas o evento não apenas de outro mundo, mas também de outro que não mundo. Logo, não pode ser o evento de um mundo superior, mundo interior ou mais profundo — em qualquer sentido — que tenha uma resposta para oferecer ao lamento. Todo mundo interno e todo outro mundo exterior ou externo só pode se apresentar como tema de uma reclamação e deve ser rejeitado como incapaz de responder.

Quando Scholem escreve em seu tratado sobre o lamento: “não há resposta para o lamento; isto é, há apenas uma: ficar em silêncio”, ele capta e obscurece simultaneamente o problema da falta de resposta; pois, o lamento é sempre também um lamento sobre o silêncio que encontra, portanto, o silêncio não pode ser uma resposta ao lamento. Mas quando Scholem continua: “somente um ser pode responder ao lamento: o próprio Deus”, ele ignora o fato de que Deus também pode ser lamentado e que esse único ser também lamenta e, em seu lamento, divide-se em dois. Nenhuma instância e nenhuma atitude, muito menos a de um poder supremo, pode oferecer uma resposta que não possa ser demonstrada como insuficiente e que não possa ser rejeitada como não resposta.

O lamento só pode encontrar uma resposta irrefutável em um evento que, como evento da linguagem e do mundo linguístico de seu surgimento, seria, ao mesmo tempo, o surgimento do já-não ou do ainda-não deste mundo. A resposta só pode ser um começo ou pré-início do mundo; deve vir do lugar para o qual o lamento retorna, pois expõe as deficiências do mundo, seus fracassos e seu não-ser. Mas como o lamento escapa ao fato de que, como a abertura desse nada, é, ele próprio, um evento, portanto, um começo e um pré-início, a única resposta adequada a ele deixaria claro que é precisamente esse evento que escapa a si mesmo, sendo assim, não pode ser negado ou lamentado. Somente aquilo no lamento que nega o lamento pode ter acesso a ele pela resposta: que está, em todos os sentidos, à frente dessa resposta e de si mesmo.

O traço fundamental expresso no lamento: desejo de retornar a um estado anterior a si, um desejo que engloba o desejo de desfazer a própria existência. Essa ideia ilustra-se de forma pungente no famoso refrão de Édipo em Colono: “não nascer supera o pensamento e a fala. / O segundo melhor é ter visto a luz / e então voltar rapidamente de onde viemos”. Da mesma forma, os lamentos de Jó começam com ele amaldiçoando o dia em que nasceu e a noite em que fora concebido: “Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem! […] Ah! que solitária seja aquela noite, e nela não entre voz de júbilo!” (Jó 3:3,7). Aqui, a exigência de Jó é, paradoxalmente, a revogação da própria exigência que ele faz. Ao desejar que ele não existisse, ele simultaneamente deseja que ele não tenha esse desejo.

O lamento de Jó trabalha em direção à revogação da própria criação, não em direção a uma criação diferente ou mais feliz, mas em direção a nenhuma criação. Esse desejo supremo — não ter desejos — é um desejo sem sentido, mas inegável. Esforça-se para recusar o desejo, portanto, é mais poderoso do que qualquer mera recusa, que é em si uma forma de desejo e o evento de desejar. Esse desejo de negar todos os desejos e a existência, um desejo que se volta para antes mesmo de sua própria existência manifesta, impulsiona o lamento. Como o evento irredutível do desejo, incorpora a essência do lamento. Esse desejo supremo, o desejo de não existir, é o único desejo que não pode ser objeto de lamento.

Em contraste, o desejo de ter um desejo, que é igualmente paradoxal, é um desejo por sua própria existência e aprimoramento. No entanto, esse desejo entra em um ciclo infinito de lamentações. O desejo de não ser, no entanto, é diferente do que almeja: representa um sim ao nada para o qual se abre e, como a ocorrência desse sim, está além do alcance da reclamação. Esse desejo, por não ter um mundo, permanece aberto a uma resposta que esclarece sua natureza como um desejo e como um acontecimento. Como tal, está no início de um mundo, mesmo precedendo esse início.

Em essência, o lamento revela um desejo profundo e contraditório: o desejo de retornar a um estado anterior à criação, um desejo que, em última análise, busca sua própria revogação. Esse desejo único, impulsionado pelo acontecimento irredutível de desejar, destaca-se de todos os outros desejos e reclamações. É um desejo de não-ser, um sim ao nada e, dessa maneira, escapa ao reino do lamento. Somente reconhecendo esse desejo como um evento, como o início de um mundo, podemos entender sua verdadeira natureza e o espaço único que ocupa na experiência humana.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Quartas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Se for necessário dizer que a reclamação é o evento do nada que ela descobre, rejeita e preserva ao rejeitar, então também deve ser dito que — como esse evento — ela é um não-nada. A reclamação não é, portanto, um não para o nada como negação lógica que nega um nada pressuposto, portanto, que fica presa na autocontradição. E não é um não para o nada como uma limitação lógica que confina o nada pressuposto, negando-lhe predicados determinados e julgando-o, por exemplo, inpensável, inprodutivo ou incompleto. Essa negação de um predicado determinado do nada sempre determina o sujeito lógico em um único ponto — impensabilidade, improdutividade ou incompletude — mas deixa-o indeterminado em sua relação com a infinidade de outros predicados. Embora esse juízo limitador dependa de sua continuação infinita — portanto, descrito como “juízo infinito” — não há determinação positiva no ponto sempre único que descreve por meio de sua negação como um não-nada, mas sim a determinação da determinabilidade. Assim, esse não-nada provou ser algo que pode ser determinado, portanto, ser um ser que, por meio de outras determinações — mesmo que infinitas — pode, em princípio, chegar à sua determinação lógica.

Hermann Cohen, a quem devemos agradecer pela redescoberta, seguindo Kant e contra Hegel, do juízo infinito, colocou-o — como o “juízo da origem” — no início de sua Lógica do conhecimento puro [Logik der reinen Erkenntnis] porque é a origem da determinabilidade puramente lógica dos objetos em geral. O importante tratado de Gershom Scholem “Sobre o lamento e a lamentação” [Über Klage und Klagelied] é orientado para essa lógica do não-nada; o esboço de Estrela da redenção [Stern der Erlösung] de Rosenzweig segue-a; e partes significativas das concepções linguístico-filosóficas e histórico-filosóficas de Benjamin, transformadas de lógica em história da origem, desenvolveram-se a partir dela. Sem aprofundar o assunto aqui, pode-se dizer, em particular, que a lógica da origem, como Cohen apresenta-a e como Rosenzweig desenvolve-a no início de Estrela, faz do nada um pressuposto, posiciona esse pressuposto como negável e usa esse pressuposto negável como um meio de produzir um não-nada, portanto, algo. Esse nada não é meramente lógico, mas, como pressuposto lógico para o conhecimento, não é de forma alguma nada, mas sim o instrumento para a produção de algo. Portanto, Cohen fala explicitamente de um recurso “metodológico” à creatio ab nihilo, Rosenzweig de um “pressuposto” indispensável para o conhecimento do ser infinito divino, Benjamin, em seu “Fragmento Teológico-Político”, de um “método […] chamado niilismo”. Em seu estudo, Scholem chega à conclusão de que o lamento é “a linguagem da aniquilação” e, em seu limite máximo, provoca a revelação de Deus.

O nada não é apenas nada quando é utilizado como meio de construir ou alcançar algo, mas já se tornou a defesa contra si mesmo ocultada em seu conceito oposto. No entanto, precisamente essa defesa não é mais pensada na lógica da origem especificamente como defesa do que a instrumentalização e a metodologização, a desafetação, do nada. No entanto, nessa construção lógica, a natureza da abertura e da afirmação do nada como evento fica completamente ausente. Além disso, uma vez que na lógica o nada só pode assumir um estatuto ambíguo, na medida em que, por um lado, é um nada e, por outro, é nomeado (portanto, não é nada), o discurso do progresso infinito na determinação desse nada também permanece ambíguo e, além disso, mina imperceptivelmente o pensamento da infinitude de Deus e de sua revelação. Essa infinitude também, em vez de ser a saturação de um vazio, deve ser pensada como atravessada precisamente por esse vazio. Pensado a partir do solo vazado da limitação lógica de um nada lógico, o Ser só pode ser um ser postulado, concreto e incompleto, progredindo em graus diferenciais em direção a propósitos pré-estabelecidos; só pode indicar o “objeto” da reclamação, não o início da reclamação e nem seu evento.

Por mais linguística que seja, a reclamação não é “lógica”. Não se expressa em enunciados e não pode ser traduzida em enunciados “positivos” ou “negativos”, “verdadeiros” ou “falsos”, precisos ou imprecisos, sem deixar de ser reclamação. Sempre acerta o alvo, pois só revela o que lamenta e revela os defeitos de sua demonstração, bem como os defeitos do que mostra. Sempre acerta seu alvo, pois sempre encontra um não e encontra-o como insuficientemente rejeitado por ela e como sempre insuficientemente revelado por ela. É sempre, ao mesmo tempo, “verdadeira” e “falsa”, porque o único critério para ambas é a lamentabilidade da qual ela não pode se eximir. Se condena, não condena o que é, mas sim o que nela não é: não condena com base em algo positivo, mas com relação ao que falta em todo positivo e em sua posição.

Entretanto, por ilimitado que seja o âmbito da reclamação, permanece restrito ao que pode tematizar — ainda que inadequadamente — e não inclui o evento de sua tematização. Como nenhum evento pode ser transformado em objeto de apresentação sem deixar de ser evento, o curso de cada evento deve permanecer inapresentável e irrefutável. Para colocar isso em termos de formalização lógica, a reclamação é incapaz de negar a inegabilidade de suas negações. Ao lado de toda a postulação, a reclamação — como a revelação de um nada do mundo e de si mesma — é a afirmação de sua própria inegabilidade, portanto, também da inegabilidade de seu evento. Acima de tudo, portanto, é a queixa de que é — de fato, irrefutavelmente — um evento. Mesmo que rejeite tudo e a si, o fato de rejeitar e ocorrer nessa rejeição permanece irrefutável para si. Mas também permanece indemonstrável. Consequentemente, aquilo que, nela, é o evento da revelação de seu — e de todo — nada também permanece indemonstrável para a reclamação. Embora a queixa também possa se lamentar, ao fazê-lo, revela-se e descarta-se apenas como tema, enquanto o evento da lamentação, sua apresentação e rejeição, deve lhe escapar. O que escapa à reclamação estruturalmente é seu próprio evento, todavia, o absolutamente inolvidável.

Para precisar os traços fundamentais do movimento da reclamação: sua transcendência para o que não é no sentido de um determinado objeto ou conteúdo de representação não pode ser um processo existente, nem pode ser totalmente ele mesmo e, como tal, presente a si mesmo. Como se move em direção a um não, seu próprio curso deve ser determinado por esse não; deve ser determinado em todos os sentidos. Mas o que caracteriza todo movimento só se torna claro no movimento extremo da reclamação, pois todo movimento, na medida em que é movimento, deve se mover em direção ao que não é, deve ser a transição para o seu não-ser e, como tal transição, não pode ser absolutamente presente a si. Precisamente porque a reclamação atravessa aquilo que não é, portanto, deve ser o evento de um não evento e deve ser o evento da não-presença desse evento. Como transcender para o nada, só pode ser uma transcendência para o não-transcendente, deve ser uma transcendência sem transcendência e, como a transição para o que não é, uma transcendência sem imanência. O movimento linguístico e, no limite, o movimento da reclamação, entendido precisamente, é a(d)-transcendente. Somente como o evento que não está tematicamente presente a si mesmo é que a reclamação é finita. Só pode ser afastada de sua finitude, de sua não autopresença, de sua inacessibilidade a si e de sua falta de autofundação. Em contraste, só pode se voltar para a repetição infinita de sua autotematização, na qual nunca deixa de faltar a si. O movimento de reclamação — o movimento de abertura do que não é de forma alguma objetivo e presente, o movimento de abertura da linguagem — esse movimento de reclamação esbarra em uma fronteira insuperável em si, em que, não apresentável e inegável, escorrega para longe de si como evento.