quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Arte, entretenimento e sensibilidade no mundo contemporâneo

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A hegemonia da indústria cultural molda profundamente nossas experiências e percpeções. A produção cultural em massa (de massa e para a massa) — o entretenimento — domina os espaços de lazer, informação e até mesmo reflexão. Entretanto, essa hegemonia não é neutra: atua como força que forma — ou deforma — nossa sensibilidade, determinando como nos relacionamos com o mundo, com os outros e conosco mesmos.

O entretenimento, como manifestação cultural predominante, simplifica as experiências, traduzindo a complexidade da realidade em narrativas acessíveis, previsíveis e reconfortantes. Em contrapartida, a arte resiste a essa tendência. Em vez de uniformizar e amortecer a percepção, a arte se posiciona como espaço de resistência, instigando-nos a confrontar a profundidade e a opacidade da realidade que nos cerca, sua não obviedade. Essa tensão entre arte e entretenimento não é meramente estética; trata-se de uma questão ontológica e política, que afeta a maneira como compreendemos o mundo e nosso lugar nesse.

Como o entretenimento e a arte, enquanto forças culturais e simbólicas, moldam nossa sensibilidade e percepção do mundo? O que está em jogo não é apenas a escolha entre consumir um filme ou visitar uma galeria, mas como essas práticas definem nossa capacidade de sentir e interpretar a complexidade da existência. Lancemos luz sobre os mecanismos que nos insensibilizam e os que têm o potencial de nos despertar.

A lógica do entretenimento e a mentira da simplicidade

O entretenimento faz uma promessa sedutora: o mundo é simples, compreensível e acessível em sua totalidade. Esse discurso, produzido e fornecido pela indústria cultural, mostra-se profundamente conformista. Não apenas nos oferece o alívio de um mundo supostamente ordenado de maneira facilmente apreensível, mas também domestica nossa sensibilidade, moldando-a para rejeitar o complexo, o contraditório e o incômodo. No entanto, essa promessa é ilusória, pois aquilo que se apresenta como simples frequentemente oculta uma intricada teia de relações, histórias e forças subjacentes.

A mentalidade “pornográfica”: exposição total e ausência de mistério

Para compreender o entretenimento no capitalismo contemporâneo, mobilizemos o que podemos chamar “mentalidade pornográfica”. Trata-se da tendência a expor tudo, a supor colocar todos os aspectos da realidade à mostra, sem deixar espaço para o mistério ou o não dito. Emprestado do conteúdo sexual, refere-se à lógica de saturação sensorial e cognitiva que permeia a cultura para a massa social. Sob essa ótica, tudo o que vale a pena ser conhecido já foi revelado; resta ao espectador consumir essas revelações pré-fabricadas, já embaladas e oferecidas à porta de casa, sem necessidade de investigação, dúvida ou reflexão.

Essa mentalidade fica especialmente evidente em produtos como programas de televisão, redes sociais, filmes comerciais e até podcasts de crimes reais. Prometem desvendar a “verdade” por trás de mistérios complexos — como crimes não resolvidos ou dilemas emocionais —, mas fazem isso de forma que as narrativas sejam plenamente assimiláveis, quase como fast food intelectual. Nada restaria oculto ou ambíguo. Essa simplificação extrema empobrece o imaginário e consolida uma percepção de que a realidade é transparente e previsível, quando, na verdade, é intrinsecamente opaca e cheia de nuances.

Alienação das complexidades do mundo

A lógica do entretenimento simplificado não opera apenas no nível estético ou narrativo; também afeta a maneira de percebemos o mundo material. Um exemplo ilustrativo pela análise de um objeto cotidiano: uma camiseta. À primeira vista, parece apenas um item trivial e autossuficiente, cujo valor se determina apenas por sua função (vestir) e sua estética (ser agradável ou estar na moda). Todavia, ao examinarmos melhor, descobrimos que esse objeto está embutido em uma complexa rede global de processos econômicos, sociais e históricos. Para que uma camiseta chegue ao consumidor final, é necessário o cultivo do algodão, a exploração da mão de obra em diversos países, processos industriais de tratamento e tingimento, logística de transporte e estratégias de propaganda que a tornem desejável. Por trás de cada etapa, há camadas imperceptíveis à primeira vista: as condições de trabalho precárias nas fábricas, o impacto ambiental do cultivo intensivo de algodão, as relações de poder entre países que produzem matérias-primas e aqueles que detêm a tecnologia de fabricação. Todos esses elementos e muitos outros desaparecem no produto final, apresentado como uma unidade simples e consumível.

Essa simplificação radical — o visível ocultando as redes invisíveis que o sustentam — não é acidental. É consequência da lógica do capitalismo, que busca maximizar o consumo ao minimizar a complexidade percebida. O entretenimento, como um dos braços mais poderosos dessa máquina de enganar e devorar vidas, reforça essa percepção superficial. Treina nossa sensibilidade para aceitar apenas o compreensível de imediato, desfalcando nossa capacidade de perceber o mundo como realmente é: multifacetado, interconectado e profundamente desigual.

Clichês narrativos e bloqueio da curiosidade

Outro aspecto fundamental do entretenimento massificado é sua dependência de clichês narrativos. Seja em filmes, séries, jogos eletrônicos ou romances populares, as histórias seguem fórmulas e estruturas previsíveis: o herói que triunfa no final, o casal que supera obstáculos e se une, o vilão que recebe sua punição. Esses padrões narrativos, embora confortáveis, limitam-nos. Nos oferecem soluções prontas, eliminando a necessidade de questionar as premissas da história ou reflitir sobre sua relação com a realidade.

Esse bloqueio narrativo é análogo ao bloqueio da curiosidade. A narrativa clichê nos ensina que não há necessidade de ir além do óbvio, de explorar o que está oculto ou de desafiar as convenções. Sobretudo, reduz a percepção do espectador a uma espécie de automatismo: identificamos os arquétipos, antecipamos os desfechos, assim, permanecemos passivos diante daquilo que deveria ser uma experiência de descoberta e transformação.

Esse efeito se amplifica pela repetição incessante. Consumimos as mesmas narrativas com pequenas variações, como em franquias de filmes ou programas de TV que reciclam estruturas narrativas ad nauseam. O entretenimento torna-se uma máquina de reciclagem simbólica, incapaz de criar algo verdadeiramente novo, mas altamente eficiente em manter o espectador preso em sua zona de conforto.

O papel da sobrecarga no consumo de entretenimento

No contexto contemporâneo, importan destacar que a busca por narrativas simplificadas e reconfortantes não é apenas uma questão de preferência cultural, mas também uma resposta às condições materiais da vida sob o capitalismo. Muitos dos consumidores de entretenimento vivem sob condições de estresse constante: jornadas de trabalho excessivas, violência urbana, insegurança econômica e alimentar, além da pressão psicológica causada pela hiperconexão digital. Essas condições criam demanda por formas de entretenimento que não exijam esforço intelectual ou emocional. Filmes de terror, por exemplo, oferecem uma catarse emocional segura, enquanto podcasts de crimes reais permitem que os ouvintes explorem o macabro sem sair da rotina. Mesmo esses gêneros, que à primeira vista parecem romper com a noção de confortável, operam dentro dos limites de uma lógica de simplificação e previsibilidade, oferecendo ao consumidor exatamente o que ele espera, sem surpresas genuínas.

A lógica do entretenimento é, em última instância, a lógica do conforto e da familiaridade: simplifica o complexo, oculta o invisível e nos ensina a rejeitar o desconhecido. Essa mentalidade empobrece nossa sensibilidade estética, também limita nossa capacidade de compreender o mundo de forma crítica. O entretenimento, ao transformar a realidade em uma experiência trivial, impede que reconheçamos as contradições e conflitos que sustentam o visível.

Essa constatação é essencial para compreender os desafios que a arte enfrenta no mundo contemporâneo. Enquanto o entretenimento opera como um anestésico cultural, a arte tem o potencial de atuar como um antídoto, revelando a complexidade, a profundidade e o mistério que se tenta ocultar. Como a arte pode reverter os efeitos dessa lógica de simplificação, resgatando nossa capacidade de perceber e sentir o mundo em sua plenitude?

Arte como ferramenta de sensibilização

A arte pode funcionar como ferramenta privilegiada para a sensibilização e a expansão da percepção. Diferentemente do entretenimento de massa, o qual simplifica o mundo e reforça padrões previsíveis, a arte provoca estranhamento, desafiando as convenções e nos reconectando com a complexidade do real. Neste mundo dominado pela lógica capitalista e pela redução de experiências a meras mercadorias, a arte se destaca como força de resistência, ampliando as possibilidades de sentir, pensar e imaginar.

Estranhamento como primeira passagem à reflexão

Dos papéis centrais da arte: estranhar. Esse conceito, amplamente discutido por teóricos da literatura desde sua alcunha por Viktor Shklovsky, implica ruptura na percepção automatizada dominante no cotidiano. Shklovsky propõe que, ao tornar o familiar estranho, a arte interrompe o processo de automatização, forçando-nos a mirar o mundo com olhos renovados.

Essa função da arte pode ser observada em obras que subvertem expectativas, como as experimentações formais das vanguardas europeias do início do século XX. O cubismo, por exemplo, rompe com a perspectiva renascentista ao desmontar a imagem e apresentar múltiplos pontos de vista simultaneamente. Essa abordagem não apenas desafia o espectador a reconfigurar sua percepção visual, mas também questiona a ideia de que existe uma única maneira “correta” de ver o mundo.

No campo literário, autores como Franz Kafka utilizam o estranhamento de maneira profundamente psicológica e existencial. Em A metamorfose, a transformação de Gregor Samsa em um inseto não se explica nem justifica. O absurdo dessa situação força-nos a confrontar o desconforto, desestabilizando nossas noções de identidade, humanidade e propósito. Esse tipo de estranhamento não oferece respostas fáceis, mas nos impele a refletir sobre as condições de nossa existência.

Experiência estética e psicanálise: o oculto

A arte também pode ser comparada ao processo psicanalítico, cujo objetivo é trazer à tona conteúdos inconscientes que moldam o comportamento e a percepção. Enquanto a psicanálise trabalha no nível individual, a arte atua tanto no nível pessoal quanto coletivo, explorando as estruturas invisíveis que organizam a sociedade e a subjetividade.

A pintura surrealista, por exemplo, é um campo fértil para essa analogia. Artistas como Salvador Dalí e René Magritte exploraram imagens oníricas que evocam a peculiar lógica do inconsciente, desafiando as fronteiras entre real e imaginário. Obras como A persistência da memória, de Dalí, ou Os amantes, de Magritte, apresentam cenas impossíveis que, por isso mesmo, convocam sentimentos profundos e difíceis de explicar. Não apenas estimulam uma resposta emocional, mas também nos convidam a interrogar os significados subjacentes a nossas experiências e desejos.

De maneira semelhante, a literatura modernista frequentemente assume o papel de revelar as forças ocultas que moldam a vida social. Em Ao farol, de Virginia Woolf, o fluxo de consciência dos personagens expõe os processos internos de pensamento e emoção de forma radicalmente nova (para a época e ainda hoje). Woolf força-nos a enxergar a complexidade do tempo, da memória e das relações, revelando camadas de subjetividade que normalmente permanecem fora de alcance.

Essa ação reveladora da arte vai além do indivíduo. Obras que desafiam normas estéticas ou narrativas muitas vezes expõem as dinâmicas de poder e as desigualdades sociais que sustentam o mundo visível, mesmo que isso não esteja patente. O teatro épico de Bertolt Brecht, por exemplo, rompe a ilusão teatral e ainda incita o espectador a refletir sobre as condições sociais e políticas que estruturam sua realidade. Por meio de técnicas como a interrupção e o distanciamento, Brecht transforma a experiência estética em uma ferramenta de conscientização política sem se tornar panfletário no processo.

Exemplos de obras que desafiam convenções

A história da arte está repleta de exemplos de obras e movimentos que desafiam as convenções e despertam novas sensibilidades. Cada uma dessas obras, à sua maneira, ilumina aspectos da experiência humana que permanecem invisíveis ou ignorados sob a lógica do entretenimento massificado.

  1. A Fonte, de Marcel Duchamp: talvez dos exemplos mais emblemáticos de como a arte pode provocar e reconfigurar sensibilidades. Um urinol que o artista apresentou como obra de arte em 1917. Ao deslocar um objeto do cotidiano para o contexto de uma galeria, Duchamp desafiou a própria definição de arte (enquanto instituição, fosse pela assinatura do urinol, fosse por sua exposição em uma galeria). A provocação não está apenas no objeto em si, mas na pergunta que impõe ao espectador: o que é arte, afinal? A Fonte não é uma obra enquanto gesto que exige reflexão crítica, rompendo com a passividade que o consumo de entretenimento reforça.

  2. Guernica, de Pablo Picasso. A monumental pintura de Picasso, criada em resposta ao bombardeio de Guernica durante a Guerra Civil Espanhola, é uma denúncia da violência e da destruição. A obra rejeita a beleza tradicional e adota uma estética fragmentada e caótica, expondo e refletindo a brutalidade do tema. Guernica não só documenta um evento histórico, como também evoca uma resposta emocional e ética, confrontando o espectador com a realidade do sofrimento recente.

  3. O cinema de Andrei Tarkovski. Conhece-se o cineasta russo Andrei Tarkovski por sua abordagem contemplativa e profundamente espiritual do cinema. Filmes como Stalker e Solaris exploram temas como o tempo, a memória e a transcendência, recusando as narrativas lineares e o ritmo acelerado característicos do cinema comercial. Tarkovski convida o espectador a uma experiência de imersão e introspecção, desafiando a lógica de consumo rápido e oferecendo, em vez disso, um espaço para a reflexão.

  4. Clarice Lispector e o desafio da palavra. Na literatura brasileira, Clarice Lispector é um exemplo incontornável de escritora desafiando convenções narrativas e linguísticas. Em obras como A paixão segundo G.H., Lispector desfaz a experiência subjetiva de maneira radical, questionando as fronteiras entre o eu e o outro, o humano e o inumano. Seus textos exigem do leitor uma postura ativa, requisitando esforço para penetrar no intricado tecido de significados e figurações que ela constrói.

Arte como contraponto à simplicidade

Esses exemplos ilustram como a arte pode funcionar como contraponto à lógica da simplificação que domina o entretenimento. Enquanto o entretenimento tenta oferecer soluções prontas e narrativas fechadas, a arte convida à dúvida, à reflexão e à exploração de possibilidades. Essa diferença é crucial em um mundo que tende a reduzir a experiência ao consumo de mercadorias e ao conforto da previsibilidade.

A arte convida a despertar. Nos reconecta com as dimensões mais profundas e complexas da experiência, revelando o que está oculto e nos permitindo sentir o que jaz ignorado. Em tempos de saturação de entretenimento e anestesia cultural, a arte se mantém como resistência, capaz de reconfigurar nossa sensibilidade e expandir nossa percepção do mundo. Examinemos os desafios e possibilidades da criação artística em um contexto dominado pelo capitalismo cultural, explorando como artistas podem atuar como agentes de transformação.

Assimetria entre arte e entretenimento

A lógica do consumo massificado domina o mundo, o entretenimento ocupa o centro da vida cotidiana, permeia todos os espaços, da televisão às plataformas de streaming, das redes sociais aos jogos eletrônicos, oferecendo experiências projetadas [designed] para consumo rápido e confortável. A arte, por outro lado, está marginalizada: o grande público percebe-a frequentemente como inacessível, elitista ou desinteressante. Essa assimetria não é mero acaso histórico ou estético, mas reflexo da dinâmica estrutural enraizada na economia e na cultura capitalista.

Lógica do entretenimento: consumo e reprodutibilidade

Projeta-se o entretenimento, na sociedade de consumo, para ser fácil, repetível e altamente lucrativo. Desenvolvem-se filmes, séries, canções e jogos com fórmulas que garantem ampla aceitação, frequentemente apelando para emoções primárias, como humor, medo e excitação. Esses produtos seguem padrões narrativos e estéticos que privilegiam o reconhecimento imediato e a previsibilidade, oferecendo ao público exatamente o que espera.

Walter Benjamin, em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, já analisava como a reprodução em massa transformava a relação entre público e obra. Enquanto a arte tradicional era singular, portadora de uma “aura” ligada à sua unicidade (de produção e de contexto), o entretenimento produzido em massa perde essa singularidade em favor da reprodução infinita. Uma canção popular, por exemplo, não precisa de um contexto específico; está disponível a qualquer momento, em qualquer lugar, e é frequentemente consumida como fundo sonoro para outras atividades.

Além disso, o entretenimento é moldado pelas exigências do mercado. Busca atender às demandas do público, bem como estimula (quiçá cria) essas demandas através da publicidade e do controle dos meios de distribuição. Essa lógica manifesta-se de maneira extrema no funcionamento das plataformas de streaming, como Netflix e Spotify, que empregam algoritmos para prever e influenciar as preferências dos usuários. Nesse sistema, o valor da obra não está na profundidade de sua mensagem, mas em sua capacidade de gerar engajamento e retorno financeiro.

Marginalização da arte

Em contraste, a arte frequentemente desafia essa lógica de mercado. Relegam-se às margens obras que não se enquadram nos moldes do entretenimento de massa, rotuladas como “alternativas”, “experimentais” ou “difíceis”. Essa marginalização se deve, em parte, à recusa da arte em oferecer soluções fáceis ou respostas prontas. A arte exige do público um esforço ativo, uma abertura para o estranhamento e a complexidade, características que não se alinham à busca por conforto (através do já sabido) promovida pelo entretenimento.

A marginalização da arte também está ligada ao modo como é distribuída e consumida. Exposições de arte, concertos, peças de teatro e publicações literárias exigem espaços e contextos específicos que, em muitos casos, são inacessíveis para a maioria das pessoas. Além disso, a arte contemporânea frequentemente desafia as normas tradicionais de beleza e significado, o que pode afastar o público acostumado às convenções do entretenimento.

Mesmo assim, essa posição marginal não diminui o poder transformador da arte. Pelo contrário, sua força reside precisamente em sua resistência às convenções dominantes. A arte, ao se recusar a ser reduzida a mera mercadoria, mantém viva a possibilidade de imaginar outros mundos, de questionar o status quo e de abrir espaço para experiências que o entretenimento não pode oferecer.

Arte como resistência: potencialidade transformadora

Embora marginalizada, a arte tem o poder de transformar tanto indivíduos quanto comunidades. Sua capacidade de provocar estranhamento e reflexão pode levar a mudanças profundas na maneira como percebemos o mundo e nosso lugar aí. Essa transformação, no entanto, é frequentemente lenta e sutil, ocorrendo em oposição à gratificação imediata oferecida pelo entretenimento.

Um exemplo dessa potencialidade transformadora está na obra do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, cujos filmes exploram o tempo, a memória e a espiritualidade de maneiras profundamente poéticas. Filmes como Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas desafiam as convenções narrativas tradicionais, oferecendo uma experiência meditativa que convida o espectador a desacelerar e contemplar. Embora esses filmes não alcancem grandes audiências, têm impacto duradouro sobre aqueles que os envolvem contemplam.

Outro exemplo é o trabalho de artistas visuais que utilizam materiais descartados ou reciclados para criar obras que questionam o consumismo e a obsolescência planejada. Esses artistas frequentemente ocupam espaços alternativos, como galerias independentes ou intervenções urbanas, e sua arte serve como lembrete das consequências ecológicas e sociais do consumo massificado.

Desigualdade de alcance e impacto

A assimetria entre arte e entretenimento não se resume à diferença de estilos ou intenções; reflete uma desigualdade estrutural de alcance e impacto. Enquanto o entretenimento domina as plataformas de distribuição e coloniza os imaginários coletivos, a arte luta para encontrar espaço nesse mundo saturado de estímulos óbvios. Essa desigualdade se agrava pela concentração de poder nas mãos de grandes corporações, as quais controlam tanto a produção quanto a circulação de conteúdos culturais.

Entretanto, a arte encontra maneiras de resistir a essa lógica. A internet, apesar de dominada por plataformas comerciais, também oferece oportunidades para que artistas independentes abranjam públicos maiores. Coletivos artísticos, festivais alternativos e projetos comunitários são outras formas de expandir o alcance da arte, criando espaços em que pode florescer.

Essa assimetria entre arte e entretenimento levanta questões fundamentais sobre o papel da cultura e do fomento dessa pelo Estado na sociedade contemporânea. Se o entretenimento reforça as normas estabelecidas e promove o conformismo, a arte tem o potencial de subverter essas normas e abrir espaço para a imaginação criativa. No entanto, para que esse potencial se realize, se faz necessário enfrentar os desafios impostos pelo capitalismo, que subordina todas as formas de expressão a meras mercadorias.

Como a arte pode resistir a essa lógica e atuar como um agente de transformação social? Discutamos estratégias para fortalecer o papel da arte em um contexto dominado pelo entretenimento e analisemos exemplos de movimentos artísticos que conseguiram expandir seu impacto mesmo em condições adversas. A arte, apesar de sua posição marginal, oferece uma visão de mundo diferente, perspectiva que desafia a lógica do consumo e nos convida a imaginar novas possibilidades para a vida coletiva.

Dialética do feio e do estranho

A arte pode perturbar, provocar e desestabilizar convenções estéticas, sociais e emocionais que se escondem sob o senso de normalidade. Essa capacidade de perturbação encontra expressão nítida na feiura: ruptura deliberada com os padrões tradicionais de beleza e ordem. Diferente do entretenimento, que se estrutura em torno do conforto e da familiaridade, a arte que abraça o feio opera no registro do desconforto, desafiando o público a repensar sua concepção de mundo. No entanto, faz-se crucial examinar como esse feio se relaciona com a dialética do estranho (conceito shklovskiano) e da familiaridade capitalista, uma tensão que subjaz a toda produção cultural na era do consumo de massa.

O feio como categoria transformadora

Historicamente, a arte ocidental foi dominada por uma busca pelo ideal de beleza. Desde as proporções clássicas do Renascimento até as paisagens românticas, entendia-se a beleza como sinônimo de harmonia, ordem e elevação espiritual. Todavia, a modernidade rompeu com esse paradigma, abrindo espaço para manifestações estéticas que desafiam ou rejeitam completamente o ideal clássico. Movimentos como o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo colocaram o feio no centro de sua proposta artística, fazendo-o ferramenta para expor as tensões e contradições da sociedade.

No contexto contemporâneo, o feio não é apenas uma subversão estética, mas também uma forma de resistência à homogeneização promovida pelo capitalismo cultural. Enquanto o entretenimento busca agradar o espectador e garantir uma experiência previsível e comercializável, a arte feia recusa essa lógica, propondo uma experiência inquietante, que exige do espectador esforço de interpretação e reflexão. O feio, portanto, não se reduz à ausência de beleza; é uma categoria ativa, ruptura que desafia o espectador a confrontar o que preferiria ignorar.

Entre o desconforto aparente e a familiaridade capitalista

Neste ponto torna-se fundamental analisar a tensão entre o desconforto gerado pela arte e a familiaridade promovida pelo capitalismo. À primeira vista, poderia parecer que o feio e o estranho oferecem uma alternativa radical à estética confortável do entretenimento. No entanto, o capitalismo possui uma notável capacidade de cooptar e neutralizar elementos subversivos, transformando-os em produtos de consumo.

Um exemplo ilustrativo disso: a popularidade de filmes e séries de terror. Embora o gênero seja conhecido por explorar temas perturbadores e imagens que evocam medo e repulsa, frequentemente se apoia em convenções narrativas e estéticas que garantem uma experiência segura e controlada. Mesmo diante do grotesco e do abjeto, o espectador sabe que está em um ambiente familiar, no qual as regras do entretenimento prevalecem. Assim, o desconforto gerado pelo terror mitiga-se por uma estrutura que reafirma a segurança e a previsibilidade da experiência. Essa dinâmica também se aplica aos documentários e podcasts de true crime, que prometem ao espectador um mergulho no perturbador, mas o fazem em um formato altamente codificado, que transforma o horror da violência em um produto consumível. Nesse sentido, o capitalismo consegue domesticar o desconforto, transformando-o em mais uma forma de familiaridade.

A arte feia, por outro lado, resiste a essa domesticação ao recusar a previsibilidade e o conforto. Em vez de oferecer uma narrativa coerente ou uma resolução satisfatória, deixa o espectador em incerteza e suspensão prolongada. Obras como as pinturas de Francis Bacon ou os filmes de David Lynch exemplificam essa abordagem, confrontando o espectador com imagens e narrativas que desafiam tanto as normas estéticas quanto as expectativas emocionais.

O estranho e a desfamiliarização

Para compreender plenamente o papel transformador do feio, faz-se útil recorrer ao conceito de desfamiliarização (ostranenie), formulado por Viktor Shklovsky. Segundo o teórico soviético, a função primordial da arte consiste em propiciar ao espectador perceber o mundo de maneira nova, rompendo com o automatismo da percepção. Ao estranhar o que se supunha familiar, já sabido ou conhecido, a arte reintroduz um senso de novidade e complexidade em experiências que haviam se tornado banais.

Embora o feio e o estranho operem em registros diferentes, partilham a interrupção dos padrões normativos de percepção. O feio faz isso ao chocar e perturbar, enquanto o estranho reconfigura nossa relação com o familiar, revelando suas camadas ocultas. Essa dialética é essencial para entender como a arte pode atuar como força transformadora, desestabilizando as narrativas e valores que sustentam a ordem estabelecida. No entanto, importa reconhecer que a desfamiliarização também pode ser neutralizada pelo capitalismo, que é capaz de transformar o estranho em uma mercadoria atrativa. A popularidade de filmes como O labirinto do fauno, de Guillermo del Toro, ou A bruxa, de Robert Eggers, exemplifica como o estranho pode ser enquadrado em convenções estéticas e narrativas que garantem sua acessibilidade e comercialização.

Dialética entre arte e entretenimento

A partir dessa análise, percebemos que a relação entre arte e entretenimento se marca por uma dialética constante. Enquanto o entretenimento busca reforçar o conforto e a familiaridade, a arte feia e estranha opera com o desconforto e a desfamiliarização. Contudo, essa oposição não é absoluta; o capitalismo cultural está constantemente assimilando e neutralizando as forças subversivas da arte.

Essa dialética também revela as limitações do entretenimento como espaço de transformação subjetiva. Embora ofereça experiências emocionais intensas, raramente desafia os espectadores a questionarem profundamente suas concepções de mundo ou a confrontarem as contradições da realidade. A arte feia, por outro lado, desafia e exige resposta ativa, engajamento além do consumo passivo.

Se o feio e o estranho têm potencial de atuar como forças transformadoras, como podemos fortalecer sua resistência à lógica de assimilação capitalista? Analisaremos estratégias para preservar a autonomia da arte e expandir seu impacto em um mundo dominado pelo entretenimento. A partir de exemplos históricos e contemporâneos, discutiremos como a arte pode continuar a operar como âmbito de resistência e transformação, desafiando normas e expectativas que sustentam a ordem cultural vigente.

A arte feia, com sua capacidade de perturbar e reconfigurar, não se reduz a uma alternativa estética, mas configura uma necessidade política e cultural em tempos de crescente homogeneização e conformismo. Ao explorar essa dialética, esperamos oferecer uma visão mais profunda do papel da arte na sociedade contemporânea e de seu potencial para imaginar e construir um mundo diferente.

Impacto e necessidade da arte como resistência

“A cultura é a regra, a arte é a exceção.” Assim nos alerta Jean-Luc Godard, não apenas com palavras, mas com a imagem que insiste em nos encarar mesmo quando preferimos desviar os olhos. A infame fotografia de Sarajevo, com sua crueza insuportável, recorda-nos que a arte não pode ser reduzida à estética do consumo, à suavidade anestesiante do entretenimento que nos protege do real. Ao contrário, a arte genuína desvia nosso olhar da ilusão de conforto para nos lançar no abismo da existência — abismo marcado por dor, horror e, paradoxalmente, a possibilidade de transformação.

A feiura que denuncia a regra

A feiura, enquanto categoria estética e ética, é a força mais potente da arte em um mundo em que a “cultura” tornou-se sinônimo de conformidade. O feio escancara o que a beleza tenta ocultar: o desequilíbrio, a violência, o absurdo e a injustiça que sustentam as normas de nossa civilização. No entanto, esse feio não é gratuito; é meio de desfamiliarização e resistência.

Enquanto o entretenimento oferece imagens suaves e narrativas redentoras, a arte, feia, confronta com imagens como a do miliciano prestes a chutar a cabeça de uma mulher caída. Não há redenção aqui, nem alívio, apenas a brutalidade nua e crua da vida em seu estado mais violento e o paradoxo visível entre o poder e a fragilidade, a força cruel e a rendição. Essa imagem não pede desculpas por ser insuportável; exige que a encaremos, que sintamos a vergonha, o desespero e o incômodo de pertencer a um mundo capaz de produzir tal cena.

Por que isso importa? Porque a “regra” cultural contemporânea, moldada pelo capitalismo, nos ensina a olhar sem ver, a consumir sem refletir, a sentir sem nos engajarmos. A arte feia quebra esse ciclo, obrigando-nos a experimentar o desconforto como um estado necessário para a compreensão. Nesse sentido, a arte é a exceção — o momento em que rompemos com as convenções da percepção e nos deparamos com a realidade em toda a sua complexidade.

A anestesia do entretenimento

É nesse ponto que a crítica de Godard à “cultura” como dominação industrial mostra-se mais urgente. Vivemos em um mundo em que o mercado sequestrou a estética, a experiência estética transformou-se em mercadoria para consumo rápido e descartável. Já não ficamos com nada, não habitamos nada, tudo muda semanalmente e nada dura — o saber, o entender, como ensinava Nietzsche na introdução a Aurora, demora e demanda que nos demoremos. Filmes de grande orçamento, livros projetados para muitas vendas, séries que prendem nossa atenção apenas para vender assinaturas de streaming — tudo isso não é arte, mas um reflexo da lógica capitalista que reduz tudo ao útil e ao lucrativo.

O problema: nos acostumam a aceitar essa superficialidade como suficiente. Quando estamos anestesiados pelo entretenimento, perdemos a capacidade de encarar o mundo em toda sua profundidade. A fotografia de Sarajevo, por exemplo, não pode ser consumida como um produto de entretenimento; nos repele, nos confronta, nos paralisa. Mas é precisamente essa paralisação que nos obriga a refletir, a contemplar: ver além da superfície.

O entretenimento, ao contrário, nos convida a olhar para outro lado, a nos distrair. Nos oferece narrativas de heroísmo ou de superação que, no fundo, reforçam o status quo. Mesmo o desconforto que provoca é cuidadosamente controlado, de modo que nunca ameace verdadeiramente nossas crenças ou nossa complacência. A arte, em sua forma mais radical, recusa essa lógica. Não nos oferece conforto, mas nos desafia a repensar o que significa ser humano em um mundo em que violência, injustiça e alienação são as normas que regem a vida.

O feio como memória e transformação

Se a fotografia de Sarajevo pode ser descrita como feia, não o é por carecer beleza formal (composição, iluminação, etc.), mas por nos forçar a confrontar o extremo do que somos capazes. Há algo insuportável na imagem de um soldado chutando a cabeça de uma mulher indefesa, mas isso deve ser tão insuportável quanto o fato de essa violência não ser exceção, mas parte da regra que rege nossas vidas.

Aqui, o feio assume papel crucial como memória ativa. Não nos permite esquecer, não nos permite desviar o olhar. Em um mundo de imagens produzidas e descartadas a velocidades vertiginosas, em que tudo se projeta para consumo e esquecimento rápido, a arte, feia, nos força a lembrar. Insiste, resiste. Permanece.

Entretanto, o feio, como memória, é também transformação. Ao nos confrontar com o intolerável, nos desafia a imaginar um mundo diferente. Essa é a força da arte: não apenas refletir a realidade, mas oferecer uma visão crítica que nos permita enxergar além dessa. Nesse sentido a arte configura exceção: rompe com as regras da percepção e nos convida a sonhar com possibilidades que o presente nega.

Entre o horror e a possibilidade

O horror absoluto da fotografia de Sarajevo, tal como descrito por Godard e Sontag, é um testemunho da violência humana, mas também é uma acusação contra a “cultura” que permite tal violência continuar. É uma acusação contra a anestesia do entretenimento, contra a banalização da dor alheia, contra a indiferença que nos permite olhar para essa imagem e continuar com nossas vidas como se nada tivesse acontecido.

Mas a arte, mesmo quando feia, não é apenas uma denúncia; é também possibilidade. Nos recorda que, apesar de tudo, ainda somos capazes de criar, de imaginar, de resistir. Nos lembra que a beleza não está na conformidade, mas na capacidade de romper com as regras ruins e criar algo novo.

Como a música de Arvo Pärt tocando ao fundo de uma imagem insuportável, a arte mantém viva a esperança, mesmo em meio ao desespero. Não uma esperança ingênua ou redentora, mas uma esperança trágica, que reconhece a profundidade do abismo e, ainda assim, insiste em olhar além desse.

Urgência da arte genuína

Concluir esta reflexão é, em última instância, um convite à ação. Se a arte é a exceção, cabe a nós defendê-la contra as forças que buscam subjugá-la à regra. Cabe a nós valorizar o feio, o estranho, o incômodo — não como meras categorias estéticas, mas como atos de resistência em um mundo que prefere o conforto da ilusão à verdade do real.

A arte, feia, em toda a sua crueza e complexidade, recorda-nos de que o mundo não é, e nunca foi, simples ou confortável. Nos desafia a confrontar nossas próprias contradições, a ver além das superfícies, a imaginar algo diferente. E, ao fazer isso, nos oferece uma visão crítica do presente e, a partir dessa, uma possibilidade de futuro.

Então, que possamos olhar para a fotografia de Sarajevo — e para todas as imagens que representa — não com indiferença ou resignação, mas com a coragem de sentir, pensar e transformar. Que possamos, enfim, defender a arte como aquilo que é: a exceção além de toda regra que nos recorda de que ainda podemos resistir e mudar.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Notas sobre a concepção da linguagem literária enquanto mimética

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A pergunta pelo que é literatura levanta problemas sérios dada a constituição histórica de conceber o literário como mimético, não ontológico. Que se conceba a literatura por suas características mais gerais, faz com que se a pense como um derivado ontológico, uma vez que se retém comumente a precedência de o que é presente, tomando-o como representado no literário. Aquilo que é, o ser-presente (a forma-matriz da substância, da realidade, das oposições entre matéria e forma, essência e existência, objetividade e subjetividade, etc.) distingue-se da aparência, da imagem, do fenômeno, etc., ou seja, de qualquer coisa que, apresentando-o como ser-presente, duplica-o, representa-o, e pode, portanto, substituí-lo e depresentá-lo. Portanto, há o 1 e o 2, o simples e o duplo. O duplo vem depois do simples; ele o multiplica como acompanhamento. Se lemos a literatura como Heidegger leu Trakl, torna-se necessário conceber um elemento da e na linguagem que não está precedido por nada. Entretanto, se linguagem (literária) tem por natureza a mimese, tratar-se-ia de um espelho originário, que representa algo nunca antes presente ou apresentado. Na interpretação heideggeriana algo fenomenológica do pensamento grego antigo, mimese significa, antes de imitação, a presentação da coisa em si, da natureza, da physis que se produz, engendra-se, e aparece (a si) como realmente é, na presença de sua imagem, sua face, seu aspecto visível. Mimese assim concebida concorda com a noção de verdade como desvelamento, alétheia, o mero aparecer de o que está presente em seu aparecimento.

A noção secundária, de mimese como imitação ou representação de algo, depende de que esse algo seja aparente no primeiro sentido de mimese, depende do aparecimento da aparência; não fosse assim, seria difícil (ou impossível) imitá-lo. A maneira como Heidegger trata a poesia face-a-face a linguagem cotidiana seria, de maneira simplificada, similar à relação entre mimese no primeiro e no segundo sentidos. Haveria, assim, a linguagem que pode ser resumida ou traduzida e até reduzida a formas lógicas, mas também haveria a linguagem (poética) que convoca à presença aquilo que nomeia, força que faz o aparente desvelar-se. Como Heidegger diz em Das Ding [A coisa]: nós só podemos representar, não importa de que maneira, apenas o que veio anteriormente à luz por sua própria vontade e mostrou-se-nos na luz que trouxe consigo. Assim, a linguagem não pode ser apreendida ou conceituada como objeto (como a noção representacional da linguagem apregoa) precisamente porque os objetos vêm à luz e permanecem na abertura da presença através da linguagem. Concebida conforme o sentido fenomenológico (ou grego) de verdade como alétheia (desvelamento, em oposição à verdade como adequação na representação), a linguagem não significaria tanto quanto mostraria. Essa nomeação não distribui títulos, não aplica termos, mas chama para a palavra. A nomeação chama.

Chamar aproxima o que chama. No entanto, essa aproximação não busca o que é chamado apenas para colocá-lo o mais próximo possível do que está presente, para encontrar um lugar para isso ali. O chamado de fato chama. Assim, traz a presença do que antes não era chamado para uma proximidade. O que tradicionalmente se consideraria o estatuto fictício da linguagem tornou-se a noção peculiar de Heidegger de “chamar” para a “proximidade”. Além disso, “essência” como tradução de Wesen deve ser entendida em sentido verbal ou de particípio, cuidadosamente distinto de qualquer sugestão de substancialidade. Nesse ponto, de fato, precisamos de precauções na descrição da poesia como estrutura de manifestação para não cairmos em certos clichês do pensamento empirista prevalente nos meios anglófonos. Por exemplo, poder-se-ia tomar Heidegger como rejeitando o “representacionalismo” e favorecendo o “encarnacionismo”, que um poema não deve significar, mas ser (um clichê do pensamento romântico), enfatizando o “concreto” e o “vivo” acima do “abstrato” e “representativo” — mas isso é uma incompreensão comum do pensamento heideggeriano e repete o que Derrida designou uma das (re)apropriações metafísicas mais típicas e tentadoras da escrita.

Isso seria um erro devido à insistência de Heidegger na diferença ôntico-ontológica (não sua (suposta) união). Podemos evitar esse erro e compreender melhor a concepção de linguagem heideggeriana a partir da famosa frase “A linguagem é a casa [ou morada] do Ser”. Não se trata de um movimento de esclarecer o desconhecido (“Ser”) pelo conhecido (“casa”), como as concepções tradicionais de metáfora preconizariam, mas de uma inversão dos tropos, porque é o Ser que dá à realidade dos entes presença, permitindo que a casa (ou a morada, a habitação, etc.) seja sequer pensada. O Ser diz mais da casa, permitindo que a casa seja dita, do que a casa diz do Ser. Apenas no Ser qualquer entidade pode, como a casa, tornar-se presente como é. É precisamente na linguagem que esse esclarecimento da essência (Wesen) da casa (ou da morada, da habitação, etc.) ocorre. Assim, a linguagem seria um modo de apropriação das entidades ou de tornarem-se a si. Entre o Ser e os entes (a “casa”, por exemplo), o lugar da linguagem é a diferença ôntico-ontológica, local crucial do pensamento de Heidegger, porque nenhuma leitura de Heidegger sobre o literário (e, consequentemente, acredito, nenhuma leitura responsável de Derrida) pode escapar da diferença ôntico-ontológica.

O pensamento heideggeriano propõe a diferença ôntico-ontológico porque o ser das entidades, por meio do qual são de fato, foi historicamente considerado apenas conforme o modelo de outra entidade (geralmente tida como suprema) — substância, causa primeira, summum ens. Por isso diz-se que a diferença entre ser e ente foi esquecida. A estrutura dessa diferença ôntico-ontológica é peculiar: a distinção entre uma rosa e (seu) ser é notadamente um problema distinto daquele da diferença entre uma rosa e outra ou quaisquer outras duas entidades. A estrutura dessa diferença emerge das seguintes considerações. 1) Somente como (no) ser que o reino das entidades pode estar presente ou ser de fato. 2) O Ser, pensado rigorosamente em termos de sua diferença em relação a qualquer entidade, não é uma entidade em si, mas nada e nunca pode se tornar presente ou ser do mesmo modo que uma entidade. Isso deve-se à ambiguidade ou duplicidade da presença do presente, sua aparência — aquilo que aparece como também seu aparecimento — na dobra do particípio presente. O Ser, como aparecimento (distinto da entidade que assim se torna aparente), necessariamente desaparece no própria desvelamento daquilo que torna presente.

O Ser desaparece, nunca se tornando presente, por meio da própria estrutura de presença-à-mão que realiza. Essa, então, é a estrutura da noção ilusoriamente simples de mimese como o dar-se à abertura daquilo que aparece. Então, mimese é o movimento da physis, movimento que, de alguma forma, permanece natural (no sentido não derivado dessa palavra), por meio do qual a physis, não tendo exterior, sem outro, deve ser duplicada para aparecer (a si), para produzir (a si), para desvelar (a si), para emergir da cripta em que se prefere, para brilhar em sua alétheia. Ser como desvelamento é precisamente aquilo que não aparece naquilo que se desvela (entidades). Assim, a presença ou desvelamento tem, paradoxalmente, uma estrutura de retirada ou retração ou apagamento. No que é desvelado, o desvelar mesmo se apaga. A linguagem, considerada como modo pelo qual o Ser é transferido para as entidades, participa, portanto, de uma estrutura de desvelamento ou aparecimento que nunca pode se tornar um objeto. É precisamente no desvelar da objetividade que o aparecimento apaga-se no que se torna aparente.

Como um meio de presença, a linguagem nunca pode se tornar um simples objeto de representação. A linguagem poética é a que mais incorpora essa função primordial, função da qual a noção de linguagem como representação deriva-se (e caracteriza um declínio). Em particular, a poesia produz uma diferença ôntico-ontológica, pois é por meio da linguagem que as coisas desvelam-se em seu ser. Nesse ponto, entretanto, o termo “desvelar” complica-se consideravelmente. A estrutura da diferença ôntico-ontológica pode ser descrita como uma “dobra” — uma dobra assimétrica. Uma entidade torna-se aparente em um aparecimento (Ser) que se retira em uma estrutura de apagamento como dobradura (ou redobro, para brincar com os termos). A linguagem é, propriamente, uma dobra dessa estrutura, porque, em seu próprio efeito de trazer à presença, retém-se e pode não aparecer como objeto. Como diz Heidegger, há evidências de que a natureza essencial da linguagem recusa-se terminantemente a expressar-se em palavras — na linguagem com a qual fazemos declarações sobre a linguagem.

Se a linguagem em toda parte retém sua natureza, então esse reter é da própria natureza da linguagem. Obedecendo à estrutura da diferença ôntico-ontológica, a linguagem não está presente (não é uma entidade), mas torna presente (o famoso es gibt). A linguagem apropria(-se) ou aproxima através de uma estrutura de retirada inaparente. A estrutura ontológica de um mundo encena-se na linguagem do poeta: nas aparências familiares, o poeta chama o estranho como aquilo a que o invisível confere-se para permanecer o que é: desconhecido. Em resumo, pode-se concluir que o Ser, como o aparecimento que deve permanecer invisível naquilo que torna aparente, desvela-se na linguagem poética conforme a interpretação do primeiro sentido de mimese como aparecimento. Essa seria uma conclusão superficial, entretanto, por duas razões. Primeiro, o próprio Ser (o aparecimento) nunca poderia se tornar objeto de qualquer linguagem, precisamente porque está estruturalmente em retirada. Não se pode dizer, então, que a poesia revela qualquer sentido do Ser. Segundo, a própria linguagem é o meio desse des|velar.

Essa última estrutura, portanto, não pode ser objeto da linguagem, mas a própria poesia tanto opera quanto é uma estrutura de des|velamento. A linguagem é, para Heidegger, um meio de presença (em retirada) e não pode ser objetivada. Essa estrutura seria uma mise en abyme, a linguagem poética trabalhando em uma dobra de des|velar (aparecer/ocultar) a si, sobre si, uma dobradura em que nem a linguagem (nem o Ser) é, mas uma profundeza cujo abismo resplandece conforme se oculta. Essa concepção complica as coisas para a antiga compreensão de que a linguagem (poética) repete o que é, pois demanda um espelhamento que já não tem precedente. A imagem não ocorre mais como uma duplicação (imitação), mas torna-se algo original, originário. Assim, a figura literária torna-se um acobertar que respeita essa estrutura peculiar de aparecer/ocultar no (e do) primeiro sentido de mimese. Dada essa concepção, ler (um poema, mas também em geral) já não trata sobre alguma coisa, à maneira do pensamento representacional, arguindo em favor de A, negando B, etc. Ao contrário, rumar à linguagem exige transformar esse trajeto mesmo. Portanto, não há um “conceito de” ou “visão sobre” a linguagem (literária) no pensamento heideggeriano.

O poema, habitado e transformado, vai tornando-se a si ao deslocar o reino da conceitualidade (representação) em geral. Se negamos a noção subordinante da mimese como imitação, evitando conceber a linguagem literária como derivada e secundária, então toda a metafísica entra em jogo, pois todas as noções herdadas dependem da subordinação da linguagem literária, até mesmo das noções de Ser. A querela de Derrida com o estruturalismo, como em “Força e significação” (ensaio presente em A escritura e a diferença), dá-se por ele caracterizar a linguagem literária por seus efeitos ontológicos. O literário seria peculiar por sua relação com aquilo que excede todo ente — o nada essencial sobre o qual tudo pode aparecer e se produzir na linguagem. Considerar que essa ausência-de-toda-entidade jamais se tornará objeto (de representação) expõe a peculiar estrutura de aparecimento como recuo do literário. O crítico, já que (o) nada não é (um) objeto, deve se preocupar com o modo como esse nada em si determina a si por seu desaparecimento. Na análise do Mímico, de Mallarmé, Derrida expõe a questão do literário de modo exemplar (para compreendermos seu pensamento). Mallarmé descreve uma pantomima em que o pierrô reencena o assassinato de sua mulher por cócegas nos pés até fazê-la morrer de rir.

Derrida destaca como a relação temporal é extremamente complexa nesse caso, pois “O pierrô assassino de sua esposa” foi um livreto produzido após a encenação, ao mesmo tempo em que não houve assassinato antes da encenação, sendo uma pantomima, mas o presente cênico constitui uma imbricação de presente e passado através dessa encenação e rememoração, bem como o próprio pierrô e seus gestos refazem o assassinato a cócegas na exata medida em que aludem ao ocorrido e imitam-nos. Com esse resumo fica claro como mimese como representação desloca-se na estrutura dessa pantomima (que nada precede), que a torna, portanto, uma forma de escrita originária. Simultaneamente, entretanto, a pantomima permanece uma estrutura alusiva e imitativa. Ainda que nada a preceda, essa escritura gestual não pode simplesmente ser nomeada originária sem maiores complicações. Mimese no sentido primeiro dissimula mimese no sentido segundo e vice-versa. Mallarmé chega a falar da pantomima que constitui uma alusão perpétua sem jamais quebrar o gelo ou o espelho. Derrida muito sagazmente conclui tratar-se de uma imitação (mímica, afinal) imitando nada, um duplo sem primeiro, sem precedente ou antecedente. Não há referência simples.

A mimese não apenas mimetiza, mas também é o mimetizado. Isso rompe a prioridade dada por Heidegger ao primeiro sentido de mimese (o aparecer da aparência). O deslocamento derrideano da estrutura do aparecimento (sentido primeiro de mimese) como movimento de (auto)apagamento (para não dizer (auto)extinção) pode ser compreendido em relação ao palco teatral. O modelo teatral traz à tona a questão do meio — o medium ou a mídia — através do qual a apresentação (a pantomima do mímico, o assassinato a cócegas pelo pierrô, ou até o aparecer mesmo) aparece/apresenta(-se). Se o palco é um cubo, tudo depende dessa face do cubo/parede do palco faltante, aberta. A abertura começa o espetáculo ignorada como abertura, como o elemento diáfano garantindo a transparência de transmissão do que se apresenta. Enquanto permanecemos atentos, até fascinados, vidrados (excelente termo, vista a relação com o vidro como meio diáfano, mas também como duplicador nos espelhos) em o que se apresenta, quedamo-nos incapazes de ver a presença mesma, já que a apresentação (presença) não se apresenta, não mais que a visibilidade do visível, a audibilidade do audível, o meio que desaparece no ato mesmo de permitir (algo) aparecer. Como se pode captar, o modelo teatral aborda a dobra da diferença ôntico-ontológica, focando a presença que não se apresenta, que desaparece para fazer aparecer.

No Mímico de Mallarmé, o palco torna-se um cenário estranho, pois é o próprio Pierrô. Todavia, a encenação, longe de tornar-se a quarta parede (como se diz em inglês) invisível de uma cena de representação, tornou-se aqui o único ocupante do palco. O que poderia parecer simplesmente presença (mimese sentido primeiro) “representa” a si. Além disso, o que é representado e referido não é anterior à mímica de Pierrô, ao ato de referência. Da mesma forma, não há representação, não há correspondência entre algum tema pré-existente e sua significação. A significação, sem ancoragem, envolve tudo o que parece acontecer, mesmo quando o produz. Tudo isso implica que a visibilidade do visível ou a presença do presente é apenas um efeito da estrutura da dobra (da diferença). Quando nada se encena senão a própria cena, a ilusão de profundidade do palco (do cenário) precisa se desfazer.

A quarta parede do palco teatral é apenas uma superfície (mesmo que ausente): efeito de realidade da estrutura de referência (como escreveu Derrida: a presença do presente forma apenas uma superfície). A imediatidade da apresentação do Pierrô torna-se efeito de uma estrutura de diferença. Não há presente temporal que ancoraria os movimentos de referência. Ele encena, como escreve Mallarmé e Derrida repete, sob a falsa aparência de um presente, as decisões que culminariam no crime supostamente perpetrado no momento mesmo da encenação. A ação do assassinato tem uma temporalidade absurdamente complexa: antecipação do que já terá ocorrido. A aparente imediatez da encenação é, na verdade, um não lugar. Essa imediatez da encenação permanece inelutavelmente impregnada de referimento, da estrutura referencial. Nada está à mão ou acontece na diferença entre os vários tempos dos movimentos de referência da encenação.

Assim, a aparente profundidade do palco (do cenário) como tradicionalmente se compreende a cena de representação dá (seu) lugar a uma estrutura de interrelação (referência mútua) sem centro. Esse entre deve ser concebido e compreendido sem centro relativo a qualquer sentido de ser ou estrutura de fenomenalidade. A reunião das várias estases de tempo rumo à presença do presente heideggeriana deve dar lugar ao movimento de temporalização irredutível e mesmo a pós-efeitos (como no inglês: after-effects, efeitos tardios, atrasados, lançados do futuro rumo ao passado) imprevistos. Com o Mímico de Mallarmé, deve-se arguir que nada tem lugar ou é representado — o trabalho de Derrida questiona a “imagem genuína” (que Heidegger reserva à linguagem poética e à mimese em sentido primeiro) como mero efeito de jogo de espelhos. Se a estrutura da linguagem como dobra peculiar do Ser sobre si em retirada é um mise en abyme, então, agora, sabemos que esse abismo não tem fundo. Com o Mímico, a cena de representação como profundidade do cenário dá lugar aos movimentos de superfície através do texto. Enquanto Heidegger preocupava-se com a etimologia (e a estrutura de re|velar denuncia muito disso), Derrida enfatiza os deslizes dos significantes: em um texto em que nada se apresenta, mesmo na forma de autoapagamento, trata-se menos de texto como disposição (das imagens) das coisas e mais de texto como estruturar e botar para funcionar uma máquina. A grande provocação que Derrida coloca com o Mímico de Mallarmé constitui questionar o privilégio dado ao Ser ao longo da tradição metafísica ocidental (englobando, por isso mesmo, o próprio Heidegger, que se queria fora dessa tradição e superando-a).

A dissimulação necessária, originária e irredutível do significado do ser, sua ocultação no próprio desabrochar da presença… Tudo isso indica claramente que, fundamentalmente, nada escapa ao movimento do significante e que, em última instância, a diferença entre o significado e o significante é nada. Contudo, essa falta de diferença entre o significado e o significante não é a simples presença de algo em si. De modo mais peculiar, não se trata da presença de algo (sentido primeiro de mimese) ou de sua representação (sentido segundo de mimese), mas de algo que está entre e não está em nenhum dos dois, ao mesmo tempo em que envolve ambos: o que se suspende, portanto, não é a diferença, mas os diferentes, os diferendos, a exterioridade decidível de termos diferentes. Resulta disso que o literário não se pode subordinar a qualquer metafísica ou filosofia da literatura (a querela de Derrida com a crítica temática já é bem conhecida e expõe essa questão). Se a literatura está mesmo ao lado do ser, se nada está meramente presente em sua estrutura de jogo (ou brincadeira) mimética, dificilmente se poderia determinar a presença de qualquer tema ou assunto em si: não há essência da literatura, nenhum ser-literário ou ser-literatura da literatura. Dizer que um texto literário seria sobre alguma coisa seria retornar à concepção segunda de mimese (imitação, representação), o que, a esta altura, já compreendemos não dever fazer. Uma crítica temática subordinaria o texto literário outra vez à ontologia, reduzindo-a à jurisdição daquilo que é.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A criação não fornece uma resposta ao lamento; em vez disso, alimenta o ímpeto para lamentar. O lamentador não estava presente com seu desejo no momento da criação. Isso se ilustra de maneira pungente na resposta de Yahweh às lamentações de Jó. A resposta de Yahweh não é uma declaração sobre o estado das coisas, mas uma pergunta: “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Faze-mo saber, se tens entendimento” (Jó 38:4). Essa pergunta implica que Jó não tem entendimento e não pode responder a Yahweh; também sugere que Jó não tinha lugar na fundação da Terra e que suas lamentações não tinham fundamento antes dessa criação, assim como seu desejo de voltar a um estado anterior à criação.

Além disso, a pergunta de Yahweh sugere uma noção mais profunda: com a criação, Yahweh criou um desejo que ultrapassa toda a criação porque busca retornar a um tempo anterior à criação. O desejo de Jó de não existir e de não desejar é mais poderoso do que o ato de Deus de fundar um mundo. Esse simples ato de desejar se liberta de sua condição de criatura, voltando-se contra todos os atos de fundação e todas as fundações em direção ao infundado. Isso permite que se torne um evento que existe no mundo de sequências de eventos bem fundamentadas e causais, mas que permanece sem fundamento e sem um Deus teologicamente concebido que funda.

As lamentações de Jó e o desejo ali contido apontam para um paradoxo essencial: o desejo de retornar a um estado de inexistência, um desejo de desfazer o ato fundamental da própria criação. Esse desejo está em oposição à fundação do mundo e a todos os atos subsequentes de criação. Representa uma forma de desestruturação, um desejo que transcende o próprio ato de criação, voltando-se contra esse.

A força absoluta desse desejo, esse desejo de retornar ao nada, destaca uma tensão fundamental entre a criação e o desejo de não ser. Isso sugere que, em todo ato de criação, há um desejo inerente de desfazê-lo, um desejo que antecede e ultrapassa a própria criação. Esse desejo é mais poderoso do que o ato de criação porque busca negar não apenas o mundo, mas o próprio ato de fundação que o trouxe à existência.

Assim, o lamento de Jó e o desejo final contido ali desafiam o ato fundamental da criação, sugerindo que o desejo de não ser, o desejo de retornar a um estado anterior à criação, é uma força mais profunda e fundamental. Isso ressalta a noção de que o lamento é motivado por um desejo que excede a criação, um desejo que busca retornar a um estado de in-fundação, um estado de in-existência que antecede todos os atos de criação e fundação.

A pergunta de Yahweh a Jó faz mais do que apenas sugerir que Jó não tem motivos para sua reclamação, também significa que a lamentação de Jó funciona independentemente do ato de criação de Yahweh. A lamentação de Jó dirige-se a Yahweh antes de sua criação, apelando para um deus antes de Deus se tornar um, essencialmente voltando-se para ninguém e para nada, buscando uma resposta de nada e de ninguém. A ausência de Jó no momento da criação implica não apenas que ele é uma criatura, mas que seu desejo de não ter sido criado poupa-o das decepções inerentes à criação, tornando desnecessária qualquer resposta divina.

A pergunta retórica de Yahweh, “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?” (Jó 38:4), reconhece que o lamento de Jó transcende os limites da criação; admite que o desejo de Jó de nunca ter existido, embora originado na criação e dependente dessa, é simultaneamente um evento que rejeita a própria premissa da criação, não precisando de nenhum fundamento ou apoio nessa. Esse desejo é fundamentalmente uma ocorrência do nada e uma vida conduzida por esse desejo existe antes de seu próprio início, no limite máximo do tempo, do espaço e da linguagem do mundo. É uma vida livre de ônus por si mesma, sem a compulsão de existir.

Os lamentos de Jó, portanto, não são apenas gritos pessoais de angústia, mas são os lamentos do próprio mundo. Por meio deles, o mundo volta a um estado anterior à sua criação, tornando-se um acontecimento irrefutável e inolvidável que existe livre dos princípios fundamentais da criação, consequentemente, livre de si mesmo. Essa percepção nega a necessidade de lamentação. Quando Jó entende essa implicação da pergunta de Yahweh, reconhecendo a natureza de seu próprio desejo, ele não encontra mais motivos para lamentação.

Essa interpretação sugere que a lamentação e o desejo de não existir são forças poderosas que desafiam o ato da própria criação. O desejo de Jó, embora paradoxal e irrealizável, representa uma rejeição fundamental da fundação do mundo, revelando um desejo profundo de retornar a um estado de nada. Esse desejo, existente à margem da criação, mina a própria essência do ser e oferece uma perspectiva que transcende as limitações do mundo criado. Ao compreender isso, Jó transcende seu sofrimento, indo além da necessidade de se lamentar, reconhecendo as profundas implicações de seu desejo e seu lugar na ordem cósmica.

O entendimento de Jó sobre a resposta de Yahweh revela que essa não pertence à esfera do conhecimento ou da cognição. Reconhecendo isso, Jó responde: “por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram demasiado maravilhosas e que eu não conhecia” (Jó 42:3). Essa troca de lamentação e resposta não se trata de compartilhar conhecimento, mas sim de renúncia mútua. Yahweh absolve Jó da responsabilidade pela criação, por sua vez, Jó absolve Yahweh da responsabilidade por suas tristezas. Eles reconhecem que seu diálogo não trata de transmitir informações, mas de libertar um ao outro de seus fardos interconectados.

O lamento representa o distanciamento entre o acontecimento do mundo e o próprio mundo. A única resposta significativa para o lamento é aquela que reconhece e efetua esse distanciamento, uma resposta que se distancia de todos os fundamentos. Essa é a resposta de um criador que reflete sobre o tempo anterior à criação, dirigindo-se a um lamento que opera fora das leis da criação. O lamento e sua resposta não convergem em um mundo comum; em vez disso, existem no pensamento de que não há mundo, comunicam-se não por se alinharem um ao outro, mas por contradizerem sua linguagem e todas as linguagens. Se a conversa daqueles transcende a manutenção das convenções, volta a um estado anterior ao início da linguagem.

Essa renúncia mútua entre Jó e Yahweh simboliza um profundo distanciamento existencial e linguístico. O lamento de Jó e a resposta de Yahweh operam em um reino além da linguagem e da compreensão convencionais, movendo-se em direção a um estado pré-linguístico e in-criado. Refletem uma verdade mais profunda que está fora dos limites da criação e do conhecimento, enfatizando as limitações; por fim, a transcendência da compreensão e da expressão humanas. Esse distanciamento ressalta a natureza fundamental do lamento como uma resposta às deficiências e limitações inerentes ao mundo criado, buscando uma resposta que reconheça e participe dessa transcendência.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Quintas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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A resposta à reclamação só pode deixar claro o que escapa à própria reclamação; não é uma resposta enquanto se apresentar como objeto de outras reclamações. Isso implica que só é uma resposta se não apresentar uma opinião, um julgamento ou uma explicação em que os motivos da reclamação, suas consequências ou suas implicações sejam tematizados, mas somente quando essa resposta tiver o caráter de um evento. Esse evento, se deve ser uma resposta, não pode ter o caráter de uma ação que segue a intenção de agir sobre a reclamação de forma consciente, controlada e com objetivos definidos — defender ou mitigar —, pois toda intenção pode ser superada, rejeitada e lamentada; portanto, não é o tipo de resposta que a reclamação demanda. Só pode ser uma resposta se atingir o alvo sem julgamento ou intenção e se atingir a reclamação enquanto ela não pode ser esperada, antecipada e defendida.

Como o horizonte da queixa é sempre um mundo e esse mundo é definido pelas apresentações e recusas de um nada que o constitui, a resposta deve ser não apenas um evento irrefutável, mas o evento não apenas de outro mundo, mas também de outro que não mundo. Logo, não pode ser o evento de um mundo superior, mundo interior ou mais profundo — em qualquer sentido — que tenha uma resposta para oferecer ao lamento. Todo mundo interno e todo outro mundo exterior ou externo só pode se apresentar como tema de uma reclamação e deve ser rejeitado como incapaz de responder.

Quando Scholem escreve em seu tratado sobre o lamento: “não há resposta para o lamento; isto é, há apenas uma: ficar em silêncio”, ele capta e obscurece simultaneamente o problema da falta de resposta; pois, o lamento é sempre também um lamento sobre o silêncio que encontra, portanto, o silêncio não pode ser uma resposta ao lamento. Mas quando Scholem continua: “somente um ser pode responder ao lamento: o próprio Deus”, ele ignora o fato de que Deus também pode ser lamentado e que esse único ser também lamenta e, em seu lamento, divide-se em dois. Nenhuma instância e nenhuma atitude, muito menos a de um poder supremo, pode oferecer uma resposta que não possa ser demonstrada como insuficiente e que não possa ser rejeitada como não resposta.

O lamento só pode encontrar uma resposta irrefutável em um evento que, como evento da linguagem e do mundo linguístico de seu surgimento, seria, ao mesmo tempo, o surgimento do já-não ou do ainda-não deste mundo. A resposta só pode ser um começo ou pré-início do mundo; deve vir do lugar para o qual o lamento retorna, pois expõe as deficiências do mundo, seus fracassos e seu não-ser. Mas como o lamento escapa ao fato de que, como a abertura desse nada, é, ele próprio, um evento, portanto, um começo e um pré-início, a única resposta adequada a ele deixaria claro que é precisamente esse evento que escapa a si mesmo, sendo assim, não pode ser negado ou lamentado. Somente aquilo no lamento que nega o lamento pode ter acesso a ele pela resposta: que está, em todos os sentidos, à frente dessa resposta e de si mesmo.

O traço fundamental expresso no lamento: desejo de retornar a um estado anterior a si, um desejo que engloba o desejo de desfazer a própria existência. Essa ideia ilustra-se de forma pungente no famoso refrão de Édipo em Colono: “não nascer supera o pensamento e a fala. / O segundo melhor é ter visto a luz / e então voltar rapidamente de onde viemos”. Da mesma forma, os lamentos de Jó começam com ele amaldiçoando o dia em que nasceu e a noite em que fora concebido: “Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem! […] Ah! que solitária seja aquela noite, e nela não entre voz de júbilo!” (Jó 3:3,7). Aqui, a exigência de Jó é, paradoxalmente, a revogação da própria exigência que ele faz. Ao desejar que ele não existisse, ele simultaneamente deseja que ele não tenha esse desejo.

O lamento de Jó trabalha em direção à revogação da própria criação, não em direção a uma criação diferente ou mais feliz, mas em direção a nenhuma criação. Esse desejo supremo — não ter desejos — é um desejo sem sentido, mas inegável. Esforça-se para recusar o desejo, portanto, é mais poderoso do que qualquer mera recusa, que é em si uma forma de desejo e o evento de desejar. Esse desejo de negar todos os desejos e a existência, um desejo que se volta para antes mesmo de sua própria existência manifesta, impulsiona o lamento. Como o evento irredutível do desejo, incorpora a essência do lamento. Esse desejo supremo, o desejo de não existir, é o único desejo que não pode ser objeto de lamento.

Em contraste, o desejo de ter um desejo, que é igualmente paradoxal, é um desejo por sua própria existência e aprimoramento. No entanto, esse desejo entra em um ciclo infinito de lamentações. O desejo de não ser, no entanto, é diferente do que almeja: representa um sim ao nada para o qual se abre e, como a ocorrência desse sim, está além do alcance da reclamação. Esse desejo, por não ter um mundo, permanece aberto a uma resposta que esclarece sua natureza como um desejo e como um acontecimento. Como tal, está no início de um mundo, mesmo precedendo esse início.

Em essência, o lamento revela um desejo profundo e contraditório: o desejo de retornar a um estado anterior à criação, um desejo que, em última análise, busca sua própria revogação. Esse desejo único, impulsionado pelo acontecimento irredutível de desejar, destaca-se de todos os outros desejos e reclamações. É um desejo de não-ser, um sim ao nada e, dessa maneira, escapa ao reino do lamento. Somente reconhecendo esse desejo como um evento, como o início de um mundo, podemos entender sua verdadeira natureza e o espaço único que ocupa na experiência humana.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Quartas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Se for necessário dizer que a reclamação é o evento do nada que ela descobre, rejeita e preserva ao rejeitar, então também deve ser dito que — como esse evento — ela é um não-nada. A reclamação não é, portanto, um não para o nada como negação lógica que nega um nada pressuposto, portanto, que fica presa na autocontradição. E não é um não para o nada como uma limitação lógica que confina o nada pressuposto, negando-lhe predicados determinados e julgando-o, por exemplo, inpensável, inprodutivo ou incompleto. Essa negação de um predicado determinado do nada sempre determina o sujeito lógico em um único ponto — impensabilidade, improdutividade ou incompletude — mas deixa-o indeterminado em sua relação com a infinidade de outros predicados. Embora esse juízo limitador dependa de sua continuação infinita — portanto, descrito como “juízo infinito” — não há determinação positiva no ponto sempre único que descreve por meio de sua negação como um não-nada, mas sim a determinação da determinabilidade. Assim, esse não-nada provou ser algo que pode ser determinado, portanto, ser um ser que, por meio de outras determinações — mesmo que infinitas — pode, em princípio, chegar à sua determinação lógica.

Hermann Cohen, a quem devemos agradecer pela redescoberta, seguindo Kant e contra Hegel, do juízo infinito, colocou-o — como o “juízo da origem” — no início de sua Lógica do conhecimento puro [Logik der reinen Erkenntnis] porque é a origem da determinabilidade puramente lógica dos objetos em geral. O importante tratado de Gershom Scholem “Sobre o lamento e a lamentação” [Über Klage und Klagelied] é orientado para essa lógica do não-nada; o esboço de Estrela da redenção [Stern der Erlösung] de Rosenzweig segue-a; e partes significativas das concepções linguístico-filosóficas e histórico-filosóficas de Benjamin, transformadas de lógica em história da origem, desenvolveram-se a partir dela. Sem aprofundar o assunto aqui, pode-se dizer, em particular, que a lógica da origem, como Cohen apresenta-a e como Rosenzweig desenvolve-a no início de Estrela, faz do nada um pressuposto, posiciona esse pressuposto como negável e usa esse pressuposto negável como um meio de produzir um não-nada, portanto, algo. Esse nada não é meramente lógico, mas, como pressuposto lógico para o conhecimento, não é de forma alguma nada, mas sim o instrumento para a produção de algo. Portanto, Cohen fala explicitamente de um recurso “metodológico” à creatio ab nihilo, Rosenzweig de um “pressuposto” indispensável para o conhecimento do ser infinito divino, Benjamin, em seu “Fragmento Teológico-Político”, de um “método […] chamado niilismo”. Em seu estudo, Scholem chega à conclusão de que o lamento é “a linguagem da aniquilação” e, em seu limite máximo, provoca a revelação de Deus.

O nada não é apenas nada quando é utilizado como meio de construir ou alcançar algo, mas já se tornou a defesa contra si mesmo ocultada em seu conceito oposto. No entanto, precisamente essa defesa não é mais pensada na lógica da origem especificamente como defesa do que a instrumentalização e a metodologização, a desafetação, do nada. No entanto, nessa construção lógica, a natureza da abertura e da afirmação do nada como evento fica completamente ausente. Além disso, uma vez que na lógica o nada só pode assumir um estatuto ambíguo, na medida em que, por um lado, é um nada e, por outro, é nomeado (portanto, não é nada), o discurso do progresso infinito na determinação desse nada também permanece ambíguo e, além disso, mina imperceptivelmente o pensamento da infinitude de Deus e de sua revelação. Essa infinitude também, em vez de ser a saturação de um vazio, deve ser pensada como atravessada precisamente por esse vazio. Pensado a partir do solo vazado da limitação lógica de um nada lógico, o Ser só pode ser um ser postulado, concreto e incompleto, progredindo em graus diferenciais em direção a propósitos pré-estabelecidos; só pode indicar o “objeto” da reclamação, não o início da reclamação e nem seu evento.

Por mais linguística que seja, a reclamação não é “lógica”. Não se expressa em enunciados e não pode ser traduzida em enunciados “positivos” ou “negativos”, “verdadeiros” ou “falsos”, precisos ou imprecisos, sem deixar de ser reclamação. Sempre acerta o alvo, pois só revela o que lamenta e revela os defeitos de sua demonstração, bem como os defeitos do que mostra. Sempre acerta seu alvo, pois sempre encontra um não e encontra-o como insuficientemente rejeitado por ela e como sempre insuficientemente revelado por ela. É sempre, ao mesmo tempo, “verdadeira” e “falsa”, porque o único critério para ambas é a lamentabilidade da qual ela não pode se eximir. Se condena, não condena o que é, mas sim o que nela não é: não condena com base em algo positivo, mas com relação ao que falta em todo positivo e em sua posição.

Entretanto, por ilimitado que seja o âmbito da reclamação, permanece restrito ao que pode tematizar — ainda que inadequadamente — e não inclui o evento de sua tematização. Como nenhum evento pode ser transformado em objeto de apresentação sem deixar de ser evento, o curso de cada evento deve permanecer inapresentável e irrefutável. Para colocar isso em termos de formalização lógica, a reclamação é incapaz de negar a inegabilidade de suas negações. Ao lado de toda a postulação, a reclamação — como a revelação de um nada do mundo e de si mesma — é a afirmação de sua própria inegabilidade, portanto, também da inegabilidade de seu evento. Acima de tudo, portanto, é a queixa de que é — de fato, irrefutavelmente — um evento. Mesmo que rejeite tudo e a si, o fato de rejeitar e ocorrer nessa rejeição permanece irrefutável para si. Mas também permanece indemonstrável. Consequentemente, aquilo que, nela, é o evento da revelação de seu — e de todo — nada também permanece indemonstrável para a reclamação. Embora a queixa também possa se lamentar, ao fazê-lo, revela-se e descarta-se apenas como tema, enquanto o evento da lamentação, sua apresentação e rejeição, deve lhe escapar. O que escapa à reclamação estruturalmente é seu próprio evento, todavia, o absolutamente inolvidável.

Para precisar os traços fundamentais do movimento da reclamação: sua transcendência para o que não é no sentido de um determinado objeto ou conteúdo de representação não pode ser um processo existente, nem pode ser totalmente ele mesmo e, como tal, presente a si mesmo. Como se move em direção a um não, seu próprio curso deve ser determinado por esse não; deve ser determinado em todos os sentidos. Mas o que caracteriza todo movimento só se torna claro no movimento extremo da reclamação, pois todo movimento, na medida em que é movimento, deve se mover em direção ao que não é, deve ser a transição para o seu não-ser e, como tal transição, não pode ser absolutamente presente a si. Precisamente porque a reclamação atravessa aquilo que não é, portanto, deve ser o evento de um não evento e deve ser o evento da não-presença desse evento. Como transcender para o nada, só pode ser uma transcendência para o não-transcendente, deve ser uma transcendência sem transcendência e, como a transição para o que não é, uma transcendência sem imanência. O movimento linguístico e, no limite, o movimento da reclamação, entendido precisamente, é a(d)-transcendente. Somente como o evento que não está tematicamente presente a si mesmo é que a reclamação é finita. Só pode ser afastada de sua finitude, de sua não autopresença, de sua inacessibilidade a si e de sua falta de autofundação. Em contraste, só pode se voltar para a repetição infinita de sua autotematização, na qual nunca deixa de faltar a si. O movimento de reclamação — o movimento de abertura do que não é de forma alguma objetivo e presente, o movimento de abertura da linguagem — esse movimento de reclamação esbarra em uma fronteira insuperável em si, em que, não apresentável e inegável, escorrega para longe de si como evento.

domingo, 9 de junho de 2024

Terceiras especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Toda reclamação pode ser entendida como um pedido, ou mesmo uma oração, por ajuda, pelo menos por uma resposta. No entanto, a relação com a ajuda, como todas as relações de reclamação, é paradoxal. Na medida em que afeta toda a esfera do que pode ser tratado, pensado e interpretado, a reclamação esvazia o mundo, cria uma tabula rasa, portanto, nunca pode ser feita com o que — como toda tabula — pertence ao mundo e a todos os mundos possíveis. Como só poderia ser o objeto de uma reclamação, uma resposta à reclamação não pode ser esperada de um mundo futuro. Portanto, se a reclamação é o pedido de uma resposta, é somente uma resposta que rejeita todas as respostas, uma resposta que revoga a si. A reclamação significa a ausência de fim da reclamação; a ausência de fim significa a dissolução de todos os limites que poderiam impedir a reclamação e a ausência de fim da reclamação significa que, em cada um de seus movimentos, coloca-se diante do nada. O gesto de reclamação é, portanto, descrito de forma inadequada se for caracterizado como a rejeição de tudo o que o encontra como objeto ou contra-discurso, como resposta ou resistência. Também se dirige contra si mesmo e, como a reclamação contra a reclamação, é sempre também uma resistência a si mesmo e à sua rejeição de si mesmo e do mundo. Queixa-se da rejeição em que se envolve; avança com ela e se fortalece como resistência contra ela. Em todas as suas modalidades, é um auto-apotropaismo.

Portanto, a reclamação é caracterizada por um gesto duplo: apresenta um “não” e o rejeita. A reclamação é a primeira forma linguística - a forma do distanciamento de toda forma - que permite o surgimento do que é chamado “não” e “nada”. Antes dela não havia nada, e sem ela não haveria nada. A reclamação sobre o que não é, o que não é adequado, não é completo e não é real faz surgir esse “não” e esse “nada” em primeiro lugar. Ela não tem - essa é sempre sua mensagem mais tardia - nada de bom para transmitir, nada de novo para relatar, nada de útil para dizer. É o mensageiro do fracasso, a linguagem daquilo que não diz nada ou não é suficiente. Não nega, tematizando teoricamente, um estado de coisas que já está lá antes de si - um nada não é “objetivamente” dado, nem é um estado de coisas. É o que primeiro dá origem e torna manifesto o seu nada, lamentando-o. A lamentação, e não antes de tudo a negação lógica na qual ela é ao mesmo tempo formalizada e restringida, é o movimento - o movimento da linguagem, mas também da emoção - que abre o caminho para o nada. Portanto, é um dos movimentos que abre o primeiro de todos os problemas filosóficos, o problema da ontologia fundamental como tal. Não se trata da creatio ex nihilo, mas da creatio nihili. Também continua sendo um problema na reclamação no sentido estrito da palavra, pois a reclamação expõe o nada do mundo sobre o qual se fala meramente por falar contra ele. Quem reclama mostra um nada para o mundo ou o nada do mundo e, ao mesmo tempo, rejeita-o com sua reclamação. Esse duplo gesto de mostrar e rejeitar faz da reclamação uma complexidade irresolúvel de creatio e decreatio nihili. Somente com ela abre-se o caminho ambíguo para a criação do que se diz “ser”.

A reclamação não destrói o que já existe antes dela ou o que pode ser previsto em seu futuro. Em vez disso, ela vazia no sentido de que, em primeiro lugar, expõe algo ausente, faltante e carente, e também no sentido de que o rejeita como ausência, e no terceiro sentido de que o preserva em sua rejeição. Em todos os três sentidos, não se trata de uma mera observação, nem de uma negação, mas sim do evento da revelação de uma falta ou lapso, de um dano ou simplesmente de algo que não existe. Como essa revelação, é a afirmação - de fato, a primeira afirmação - do que não está faltando “em si mesmo”, mas sim do que está faltando. Seu não é a afirmação de um não. Somente nessa afirmação, não importa quão oculta ou muda permaneça, torna-se um objeto potencial da intenção de eliminar esse não, essa recusa de algo, e aniquilá- lo. No entanto, mostrá- lo não precede a rejeição do não, pois ele só se revela como rejeitado ou a ser rejeitado: revelado pelo fato de poder ser rejeitado. Dado que a própria reclamação é, portanto, também revelada como falta, assim que anuncia sua presença, ainda que implicitamente, ela se estende à sua própria ocorrência, mais uma vez na dupla volta de um não para seu não. É, portanto, a constante negação de uma negação, sua primeira afirmação junto com a rejeição do que é afirmado nela: um sim a um não que se revela nesse sim como algo ao qual se deve dizer não.

Isso revela, no entanto, que a reclamação é mais poderosa do que todo o nada que ela expõe, que ela é o escopo do nada e de sua rejeição, e que ela também continua sendo esse escopo se ela se mostrar deficiente e, como tal, rejeitar a si mesma. Portanto, o poder da reclamação não consiste em ter o poder de compreender o nada que ela revelou e delimitá-lo conceitual ou afetivamente. Em vez disso, a reclamação está à mercê do nada como aquilo pelo qual ela mesma se constitui. A reclamação sobre a impotência da reclamação pertence à estrutura da reclamação, assim como pertence à série de causas da reclamação. “Quem, se eu gritasse, me ouviria então”: é assim que toda reclamação se queixa de sua falta de escopo, sua falta de destinatário, a ausência de uma resposta que lhe corresponda, a ausência de uma linguagem na qual possa se expressar. Mais poderosa que o nada que revela, a reclamação não é, portanto, capaz de ter um poder próprio, mas apenas de mostrar sua impotência. É meramente o poder de permitir a impotência, de se render a esta e da abertura para o nada que ela proporciona em si mesma. Por mais destrutivas que as reclamações possam ser, elas são, antes de mais nada, a consciência e a permissão para o que se vivencia como um vazio indestrutível, como a ausência de qualquer possibilidade de produzir efeito e a perda total da capacidade. Nesse sentido, toda reclamação está antes do nada e fora dele desde dentro. Ela é em si mesma a transcendência para o que não é e nunca foi. E, como essa travessia, é o evento desse mesmo não-ser e não-ter-sido, in-capacidade e não-mais-ser.

sábado, 8 de junho de 2024

Mais especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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A teoria dos atos de fala tenta descrever o alcance e a estrutura da reclamação em termos de atos, mais precisamente, de atos locutórios. Sem adentrar mais na tensão e mesmo na incompatibilidade entre os conceitos de ato e de expressão, define a reclamação como ato de expressão. J. L. Austin atribui-na ao grupo de declarações de reações emocionais que ele chama comportamentais [behabitives]. Uma vez que os atos, do ponto de vista dessa teoria, só são considerados atos em uma convenção já dada e só podem ocorrer na condição de seguirem essa convenção, a expressão à qual devem dar um afeto está sempre definida como a expressão de um interior que foi pré-formado por convenções, um sentimento que pode ser acordado e uma linguagem de afeto socializada em princípio. Um ato que não atenda a essas condições não pode ser “bem-sucedido” ou “feliz” nos termos de Austin; como tal, é incognoscível, irreconhecível e irrespondível. As reclamações sobre atos de fala “infelizes” e “malsucedidos” podem, naturalmente, ser “felizes” e “bem-sucedidas”, mas apenas se, por sua vez, estiverem conforme as convenções da reclamação. São apenas queixas “felizes” — socialmente aceitáveis e bem-sucedidas — se e quando não são queixas, mas acordos, se não rompem com um padrão de comportamento estabelecido, mas o confirmam. A teoria do ato de fala, em suma, bane de seu sistema tanto a queixa quanto qualquer outro afeto ou expressão de afeto para garantir a ação, e bane a ação de seu sistema para garantir a sistemática da ação, a síntese das ações e a harmonia pré-estabilizada entre essas. Se, para a teoria dos atos de fala, a ação funciona consoante as convenções, então formalmente não é nada mais que a confirmação dessas convenções, portanto, paradoxalmente, tanto uma ação que satisfaz sua forma universal quanto uma não ação que se abstém de toda influência ativa sobre sua forma. O termo “ato de fala”, portanto, como utilizado pela teoria dos atos de fala, é um antônimo: não descreve nem um ato, nem um ato de fala, mas apenas uma mecânica de comportamento de acordo com um programa pressuposto de funções.

Uma vez que os atos de conformidade só podem ser “felizes” porque não são atos, sua definição também delimita os atos “infelizes” excluídos pela teoria dos atos de fala, atos que, no mínimo, têm a chance de alterar as condições de conformidade sob as quais podem se tornar eficazes e, assim, de fato, assumir o caráter de um ato. Esses atos só podem ocorrer independentemente das normas dos atos de fala, antecipadamente e sem levar em conta seu cumprimento. Portanto, só podem ser não convencionais, não se baseiam em nenhum consenso e não correspondem a rituais nem rotinas. Mas isso significa que “atos de reclamação” não devem ser apenas reclamações sem consideração por serem ouvidas ou terem efeito, reclamações sem intenção ou destinatário. Devem, em todos os sentidos, ser atos de fala “infelizes”: a saber, primeiro, atos de fala que dão origem ao infortúnio; segundo, que perdem sua intenção; terceiro, que não se conformam a nenhuma regra de compreensão. São muito estridentes, muito subjugados, muito brutais, muito desesperados, não linguísticos o suficiente ou excessivamente ativos. Uma vez que não compartilham uma regra com as expectativas associadas a tais expressões, portanto, não é seguro que serão reconhecidos como reclamações, devem essencialmente parecer anômicos, associais ou antissociais. Portanto, não deve nem ser tomado como certo que possam ser incluídos no campo da linguagem — seja um idioma específico ou uma língua humana como tal. Somente se as reclamações forem expressas absolutamente sem condição e sem um horizonte predeterminado, portanto, ou se evitarem ser expressas, são reclamações. São reclamações apenas se minarem os parâmetros de sua determinação, portanto, todas as linguagens pelas quais poderiam ser identificadas como o que são. Que pedras gritem não é uma metáfora poética. Que emoções extremas sejam expressas na linguagem de um animal não é uma descoberta fisiológica. Que toda a natureza se levantaria em lamento se lhe fosse dada linguagem, como escreve Walter Benjamin, não é a hipérbole metafísica de um melancólico, mas a definição objetiva da ausência de horizonte do que é chamado linguagem e atividade linguística sem normas convencionalistas de reconhecimento. Como toda fala, a reclamação também deve ser capaz de falhar em todas as suas dimensões — como verbalizar, tematizar, endereçar, comunicar e efetuar — para poder ser reclamação, “ato” linguístico, linguagem. É somente com base nessa possibilidade extrema — a possibilidade necessária, portanto sempre já operativa de sua impossibilidade — que a linguagem e sua queixa extrema podem ser pensadas.

A restrição da reclamação na teoria dos atos de fala a um ato “expressivo”, portanto, não apenas comete um erro metodológico, mas não faz justiça ao fenômeno da reclamação, uma vez que não reconhece sua retirada para o afenomenal como um traço constitutivo desse fenômeno. Fazemos bem, então, em abandonar essa restrição e nos voltarmos, na análise da reclamação, àquilo que rompe as fronteiras das convenções linguísticas, as fronteiras de sua comunalidade, de seu lugar na linguagem humana e talvez de sua constituição linguística como tal. Para entender a reclamação como um ato de quebra de regras e até mesmo de quebra de sua natureza como ato, para entendê-la como anti-ato e como antissocial, como anti-pacto e como paixão, temos que levar a sério a expressão “reclamação silenciosa” e relacionar a série interminável de denúncias sobre toda e qualquer coisa a uma denúncia sempre sem voz, implícita e inexprimível. Na reclamação que não se expressa, insinua-se uma reclamação sobre a própria linguagem, uma acusação do falar, uma revolta silenciosa contra o falar.

Se a pessoa reclamando pudesse descrever precisamente o que está sentindo, ela não estaria reclamando, mas sim descrevendo, compreendendo e colocando sob seu controle o objeto de sua reclamação, por mais arruinado e ruinoso que seja. A reclamação, no entanto, não é um discurso teórico e predicativo da definição de objetos e relações, mas a reclamação sobre a falha de todo o controle sobre a matéria e sobre a linguagem que pode compreendê-la. Não é uma mera relação, mas sim uma relação com o fracasso precisamente dessas relações que tenta estabelecer, uma relação com a ausência de homeostase entre dentro e fora, com a falta de correspondência entre o que pode ser sentido e o que pode ser dito, com a continuidade que nunca se materializa entre as fases do sentimento, entre sentimento e insensibilidade, entre enunciado e significado. Em cada caso, lamenta-se o que está negado. Mas o que é negado à pessoa que reclama é qualquer tipo de relação que possa oferecer coerência e constância, conformidade e consistência. Sua queixa é uma relação com o sem relação. As reclamações são, portanto, repetidamente julgadas com o termo ambíguo “excessivo”. Não conhecem limites, nem paradas, nem fronteiras, porque constantemente se referem ao que não está lá. Mas uma vez que a queixa é incessante e ilimitada, também não pode ser restrita a um interior; uma vez que não é dada uma “linguagem privada” de interioridade que poderia ser levada para fora ao ser transformada em som, mediante expressões faciais ou gestos, não há interior que pudesse ser “expresso”. Não é porque não consegue encontrar um meio adequado para seu enunciado que a reclamação jaz desprovida de expressão; está desprovida de expressão porque não tem e não é nada sobre o qual um interior estável possa ser constituído e distinguido de um exterior. É sem expressão porque corre através do movimento do puro ser-fora-de-si — o movimento, não da separação de uma linguagem interna de uma externa, não de um mundo de um segundo, mas o movimento da separação do mundo do mundo, da linguagem da linguagem, portanto do próprio movimento de cada movimento. O que ocorre na reclamação, na queixa silenciosa ou não expressa, o que ocorre na dor, é uma fissura através do mundo da linguagem como um todo — portanto, sua abertura para o que o mundo da linguagem não é e para o fato de que “não é”.

A reclamação jaz no extremo inexpressivo, desarticulado e silencioso, porque é o movimento de volta antes de um mundo da linguagem, antes de um mundo comum, consistente, físico e mental para uma relação com o que não tem força, em que nada mais pode ser entendido exceto o fato de que “está lá”, sem que seja como algo e sem que “isso” apresente-se como algo diferente da retirada de toda possibilidade de uma declaração de existência. Na sua forma mais extrema, portanto, por completo, a reclamação é a linguagem da recusa da linguagem. É por isso que pode ser descrita como o evento da separação e partida de si como linguagem e como reclamação. Uma vez que a fissura que se abre com ela constitui o evento fundamental do que é chamado linguagem, fica claro a partir dela que a linguagem não é apenas uma estrutura aberta composta de nomeações e enunciados, atos indicativos e suas modificações, acordos e contestações, mas sim, em primeiro lugar — portanto, se ainda imperceptivelmente, em todos os sentidos — uma experiência de ser-sem-linguagem e ser-sem-mundo, com afasia e afânise. A queixa, portanto, a linguagem na totalidade, é mutação: movimento com seu silenciamento. Como é esse silenciamento em que se divide e se comunica com o outro, é uma com-mutação antes e em toda comunicação.

A comunidade daqueles que falam é sempre também a comunidade daqueles que não falam uns com os outros: que são capazes de não falar, não precisam falar, que não dizem nada, ficam quietos ou permanecem em silêncio. Assim como sua linguagem não é sem pausas ou áreas silenciosas, também a conversa compartilhada e conversar um com o outro repetidamente se interrompem e abrem espaço para o que não é — pelo menos não manifestamente — linguagem. Isso não significa que o silêncio e a mudez sejam fenômenos sociais que são iguais, ou mesmo meramente comparáveis, à fala e aos segmentos dessa delimitados por pausas. Isso está tão longe do caso que mesmo expansões mínimas nessas pausas ou aumentos no intervalo entre os enunciados de diferentes falantes podem sugerir a possibilidade de ausências completas, de incapacidade de falar e da perda do mundo. Mesmo as representações mais coerentes na linguagem — talvez precisamente essas — podem murar algo não dito, sobre o que não se pode dizer se tratar de um silêncio significativo ou uma mudez sem sentido. As pausas constitutivas para toda comunicação ocupam o limiar entre a fala que comunica — pois podem ser interpretadas como ironia, como manifestação de dúvida ou como reclamação — e uma ausência de comunicação na qual não se silencia com e para os outros, uma vez que não há relação com os outros nela, mas apenas uma relação com o outro como outro, com um não outro e sua mudez, uma relação com o que é incapaz de relação. A reclamação ocupa esse limiar quando se trata de uma reclamação sobre não ser ouvida, não conseguir chegar a um destinatário, não falar uma língua comum com os outros, portanto, não ser capaz de silêncio ou comunicação.

Uma observação de Hegel sobre a conexão entre o lamento e o canto sugere que, em sua ênfase e expressividade, a música supera a linguagem, portanto, deixa para trás toda determinação que possa confiná-la ao reino da finitude. A música seria a infinitização insistente da experiência da finitude. Se assim for, no entanto, o lamento não tem simplesmente uma dimensão social, como se estivesse embutido em uma rede social que pode ser gerenciada e regulada, uma rede que regula, um mero fio em um nexo social seguro. Se o lamento é uma possibilidade irredutível — no sentido de um traço estrutural indissolúvel — de toda linguagem, então mesmo na linguagem da comunicação, algo que não pode ser comum, algo não dialógico e sem linguagem está em ação que dissolve as conexões sociais, desfaz seu tecido, destrói seus fios. O lamento está isolado no minúsculo ponto do desaparecimento, no qual não pode mais ser contado como lamento e não pode ser posto ao lado de um segundo ou terceiro. É infra-singular e super-geral, incompreensível como categoria, uma linguagem não de determinação, mas da ausência de determinação, objetivo, intenção e, no limite, também de voz. Que possa ser escutado em conversas e, repetidas vezes, na música coral pode sugerir que as comunidades lamentem, em primeiro lugar, sua própria desintegração e que se restaurem nesse lamento. Mas também pode indicar que em seu lamento — como nos diálogos de Jó e nos coros trágicos — uma linguagem antes de toda comunidade, antes de todo idioma social ou mesmo político e antes de toda generalidade conceitual se abre e, como a abertura de outra linguagem, opõe-se a toda linguagem conhecida.

Isso também afeta a forma. A dor não pode simplesmente receber forma, porque cada forma pode, por sua vez, provocar dor e ser quebrada por ela. O que seria da forma se não pudesse ser dilacerada pela dor? O que seria a dor se não distorcesse todas as formas? O movimento da dor, que sempre exige formas e sempre as destrói novamente, mina toda forma, rito e padrão de relação que deve evitar a dor e traz seu colapso. É mais uma vez instrutivo lembrar de Hegel neste contexto, uma vez que ele afirma que sua filosofia é uma filosofia do cristianismo e, mais precisamente, do espírito verdadeiramente cristão do cristianismo, que ele pensa como uma religião da dor e sua subsunção: da dor da finitude que, sentida como tal e articulada na forma adequada, também já deveria ser modificada, relativizada e aliviada. A tradição cristã que culmina nos comentários de Hegel é uma tradição de tornar social, de universalizar e espiritualizar, mas também, portanto, de negar a dor. Entendida como a dor do negativo, é sempre também o trabalho do negativo. Como esse trabalho, é produtiva. E como dor produtiva, é apenas essa dor que faz seu trabalho destrutivo como o trabalho de transformação em figuras sempre novas de espírito e, finalmente, na figura única e máxima do espírito absoluto que se contém, portanto, na forma de todas as formas. Essa última, a ideia absoluta, como a própria dor, teria que ser, ao mesmo tempo, seu alívio; teria que ser a dor sublimada, preservada, dissociada e aliviada por si mesma. No entanto, a dor subsumida nesse sentido, a dor compreendida e tornada espírito — Hegel está certo — não é mais dor. Pode ter sido aliviada como dor, mas há uma dor não aliviada precisamente no fato de que ela não faz seu trabalho de destruição como tal dor, como o possível objeto de um conceito, como uma dor que é produtiva e que produz figuras, mas sim como aquela dor que funciona fora de todos os conceitos, portanto, deste lado de toda figuração e espiritualização. É a dor que é sempre incompreensível, absolutamente sem espírito e sentido, dor que não pode tomar forma. Mas não é apenas sem sentido e não sujeita a teleologia; é também aquela dor que ataca os sentidos, paralisa-os e rouba sua capacidade de orientar. Alguém “fora de seus sentidos” está “oprimido” pela dor ou tão “atordoado” por ela que toda a esfera da sensibilidade está concentrada nessa dor, absorvida e reunida nela. A dor é pura sensibilidade, portanto, já não é mais uma sensibilidade que poderia ser contida, que poderia ser levada a um propósito ou forma pretendida.

Se houvesse uma forma “adequada” à dor, só poderia ser aquela que surge da própria dor. A dor teria que continuar a trabalhar nela e deformá-la em cada instância que diferisse dela. Mesmo expressões de pathos, como categorizadas pela psicologia racionalista e pela fisionomia, portanto, não exibem formas tanto quanto exibem sua distorção, elipses e hipérboles de forma, deformações e o colapso da formação. A dor não tem medida, não tem padrão e não tem limites — não tem dimensão — que possam permitir que seja entendida em uma figura integral, seja “subsumida” e tornada suportável por ser neutralizada. Portanto, é mais do que duvidoso que pinturas como a Crucificação de Grünewald ou O corpo do Cristo morto no túmulo de Holbein possam ser consideradas pinturas cristãs no sentido da definição de cristianismo de Hegel. Nesses lamentos pictóricos, extrai-se o amorfo dos limites das convenções formais, a desarmonia gritante do encarnadino rompe a forma, o excesso ou a retirada dos gestos composicionais, a rigidez dramática mesmo do que é instável — rompem a defesa contra a dor, que só poderia estar assegurada através da figuração e tornam a imagem explosiva, em um caso, e desgastada, no outro. Nas desfigurações da imagem, a representação da decomposição, juntamente do representado, deteriora-se. A não-pintura é pintada, o mudo fala. Daí o hiperrealismo traumático dessas imagens lamentadoras. Se há, no entanto, uma “subsunção” — uma preservação e neutralização — da dor, isso se dá apenas na ausência de lamento com a qual se está detrás e além de cada medida determinada de lamentação. Pois se a dor e a queixa excedem todas as medidas, então também excedem “a si mesmas” e o fazem de tal forma que a ausência de lamentação fala em cada lamentação, a apatia em cada pathos, a incapacidade de suportar a dor em cada dor. O meio de sua comunicação não é uma mediação; mas aquilo que não pode ser mediado, o imensurável, que aflige a linguagem e, com ela, toda medida.