A hegemonia da indústria cultural molda profundamente nossas experiências e percpeções. A produção cultural em massa (de massa e para a massa) — o entretenimento — domina os espaços de lazer, informação e até mesmo reflexão. Entretanto, essa hegemonia não é neutra: atua como força que forma — ou deforma — nossa sensibilidade, determinando como nos relacionamos com o mundo, com os outros e conosco mesmos.
O entretenimento, como manifestação cultural predominante, simplifica as experiências, traduzindo a complexidade da realidade em narrativas acessíveis, previsíveis e reconfortantes. Em contrapartida, a arte resiste a essa tendência. Em vez de uniformizar e amortecer a percepção, a arte se posiciona como espaço de resistência, instigando-nos a confrontar a profundidade e a opacidade da realidade que nos cerca, sua não obviedade. Essa tensão entre arte e entretenimento não é meramente estética; trata-se de uma questão ontológica e política, que afeta a maneira como compreendemos o mundo e nosso lugar nesse.
Como o entretenimento e a arte, enquanto forças culturais e simbólicas, moldam nossa sensibilidade e percepção do mundo? O que está em jogo não é apenas a escolha entre consumir um filme ou visitar uma galeria, mas como essas práticas definem nossa capacidade de sentir e interpretar a complexidade da existência. Lancemos luz sobre os mecanismos que nos insensibilizam e os que têm o potencial de nos despertar.
A lógica do entretenimento e a mentira da simplicidade
O entretenimento faz uma promessa sedutora: o mundo é simples, compreensível e acessível em sua totalidade. Esse discurso, produzido e fornecido pela indústria cultural, mostra-se profundamente conformista. Não apenas nos oferece o alívio de um mundo supostamente ordenado de maneira facilmente apreensível, mas também domestica nossa sensibilidade, moldando-a para rejeitar o complexo, o contraditório e o incômodo. No entanto, essa promessa é ilusória, pois aquilo que se apresenta como simples frequentemente oculta uma intricada teia de relações, histórias e forças subjacentes.
A mentalidade “pornográfica”: exposição total e ausência de mistério
Para compreender o entretenimento no capitalismo contemporâneo, mobilizemos o que podemos chamar “mentalidade pornográfica”. Trata-se da tendência a expor tudo, a supor colocar todos os aspectos da realidade à mostra, sem deixar espaço para o mistério ou o não dito. Emprestado do conteúdo sexual, refere-se à lógica de saturação sensorial e cognitiva que permeia a cultura para a massa social. Sob essa ótica, tudo o que vale a pena ser conhecido já foi revelado; resta ao espectador consumir essas revelações pré-fabricadas, já embaladas e oferecidas à porta de casa, sem necessidade de investigação, dúvida ou reflexão.
Essa mentalidade fica especialmente evidente em produtos como programas de televisão, redes sociais, filmes comerciais e até podcasts de crimes reais. Prometem desvendar a “verdade” por trás de mistérios complexos — como crimes não resolvidos ou dilemas emocionais —, mas fazem isso de forma que as narrativas sejam plenamente assimiláveis, quase como fast food intelectual. Nada restaria oculto ou ambíguo. Essa simplificação extrema empobrece o imaginário e consolida uma percepção de que a realidade é transparente e previsível, quando, na verdade, é intrinsecamente opaca e cheia de nuances.
Alienação das complexidades do mundo
A lógica do entretenimento simplificado não opera apenas no nível estético ou narrativo; também afeta a maneira de percebemos o mundo material. Um exemplo ilustrativo pela análise de um objeto cotidiano: uma camiseta. À primeira vista, parece apenas um item trivial e autossuficiente, cujo valor se determina apenas por sua função (vestir) e sua estética (ser agradável ou estar na moda). Todavia, ao examinarmos melhor, descobrimos que esse objeto está embutido em uma complexa rede global de processos econômicos, sociais e históricos. Para que uma camiseta chegue ao consumidor final, é necessário o cultivo do algodão, a exploração da mão de obra em diversos países, processos industriais de tratamento e tingimento, logística de transporte e estratégias de propaganda que a tornem desejável. Por trás de cada etapa, há camadas imperceptíveis à primeira vista: as condições de trabalho precárias nas fábricas, o impacto ambiental do cultivo intensivo de algodão, as relações de poder entre países que produzem matérias-primas e aqueles que detêm a tecnologia de fabricação. Todos esses elementos e muitos outros desaparecem no produto final, apresentado como uma unidade simples e consumível.
Essa simplificação radical — o visível ocultando as redes invisíveis que o sustentam — não é acidental. É consequência da lógica do capitalismo, que busca maximizar o consumo ao minimizar a complexidade percebida. O entretenimento, como um dos braços mais poderosos dessa máquina de enganar e devorar vidas, reforça essa percepção superficial. Treina nossa sensibilidade para aceitar apenas o compreensível de imediato, desfalcando nossa capacidade de perceber o mundo como realmente é: multifacetado, interconectado e profundamente desigual.
Clichês narrativos e bloqueio da curiosidade
Outro aspecto fundamental do entretenimento massificado é sua dependência de clichês narrativos. Seja em filmes, séries, jogos eletrônicos ou romances populares, as histórias seguem fórmulas e estruturas previsíveis: o herói que triunfa no final, o casal que supera obstáculos e se une, o vilão que recebe sua punição. Esses padrões narrativos, embora confortáveis, limitam-nos. Nos oferecem soluções prontas, eliminando a necessidade de questionar as premissas da história ou reflitir sobre sua relação com a realidade.
Esse bloqueio narrativo é análogo ao bloqueio da curiosidade. A narrativa clichê nos ensina que não há necessidade de ir além do óbvio, de explorar o que está oculto ou de desafiar as convenções. Sobretudo, reduz a percepção do espectador a uma espécie de automatismo: identificamos os arquétipos, antecipamos os desfechos, assim, permanecemos passivos diante daquilo que deveria ser uma experiência de descoberta e transformação.
Esse efeito se amplifica pela repetição incessante. Consumimos as mesmas narrativas com pequenas variações, como em franquias de filmes ou programas de TV que reciclam estruturas narrativas ad nauseam. O entretenimento torna-se uma máquina de reciclagem simbólica, incapaz de criar algo verdadeiramente novo, mas altamente eficiente em manter o espectador preso em sua zona de conforto.
O papel da sobrecarga no consumo de entretenimento
No contexto contemporâneo, importan destacar que a busca por narrativas simplificadas e reconfortantes não é apenas uma questão de preferência cultural, mas também uma resposta às condições materiais da vida sob o capitalismo. Muitos dos consumidores de entretenimento vivem sob condições de estresse constante: jornadas de trabalho excessivas, violência urbana, insegurança econômica e alimentar, além da pressão psicológica causada pela hiperconexão digital. Essas condições criam demanda por formas de entretenimento que não exijam esforço intelectual ou emocional. Filmes de terror, por exemplo, oferecem uma catarse emocional segura, enquanto podcasts de crimes reais permitem que os ouvintes explorem o macabro sem sair da rotina. Mesmo esses gêneros, que à primeira vista parecem romper com a noção de confortável, operam dentro dos limites de uma lógica de simplificação e previsibilidade, oferecendo ao consumidor exatamente o que ele espera, sem surpresas genuínas.
A lógica do entretenimento é, em última instância, a lógica do conforto e da familiaridade: simplifica o complexo, oculta o invisível e nos ensina a rejeitar o desconhecido. Essa mentalidade empobrece nossa sensibilidade estética, também limita nossa capacidade de compreender o mundo de forma crítica. O entretenimento, ao transformar a realidade em uma experiência trivial, impede que reconheçamos as contradições e conflitos que sustentam o visível.
Essa constatação é essencial para compreender os desafios que a arte enfrenta no mundo contemporâneo. Enquanto o entretenimento opera como um anestésico cultural, a arte tem o potencial de atuar como um antídoto, revelando a complexidade, a profundidade e o mistério que se tenta ocultar. Como a arte pode reverter os efeitos dessa lógica de simplificação, resgatando nossa capacidade de perceber e sentir o mundo em sua plenitude?
Arte como ferramenta de sensibilização
A arte pode funcionar como ferramenta privilegiada para a sensibilização e a expansão da percepção. Diferentemente do entretenimento de massa, o qual simplifica o mundo e reforça padrões previsíveis, a arte provoca estranhamento, desafiando as convenções e nos reconectando com a complexidade do real. Neste mundo dominado pela lógica capitalista e pela redução de experiências a meras mercadorias, a arte se destaca como força de resistência, ampliando as possibilidades de sentir, pensar e imaginar.
Estranhamento como primeira passagem à reflexão
Dos papéis centrais da arte: estranhar. Esse conceito, amplamente discutido por teóricos da literatura desde sua alcunha por Viktor Shklovsky, implica ruptura na percepção automatizada dominante no cotidiano. Shklovsky propõe que, ao tornar o familiar estranho, a arte interrompe o processo de automatização, forçando-nos a mirar o mundo com olhos renovados.
Essa função da arte pode ser observada em obras que subvertem expectativas, como as experimentações formais das vanguardas europeias do início do século XX. O cubismo, por exemplo, rompe com a perspectiva renascentista ao desmontar a imagem e apresentar múltiplos pontos de vista simultaneamente. Essa abordagem não apenas desafia o espectador a reconfigurar sua percepção visual, mas também questiona a ideia de que existe uma única maneira “correta” de ver o mundo.
No campo literário, autores como Franz Kafka utilizam o estranhamento de maneira profundamente psicológica e existencial. Em A metamorfose, a transformação de Gregor Samsa em um inseto não se explica nem justifica. O absurdo dessa situação força-nos a confrontar o desconforto, desestabilizando nossas noções de identidade, humanidade e propósito. Esse tipo de estranhamento não oferece respostas fáceis, mas nos impele a refletir sobre as condições de nossa existência.
Experiência estética e psicanálise: o oculto
A arte também pode ser comparada ao processo psicanalítico, cujo objetivo é trazer à tona conteúdos inconscientes que moldam o comportamento e a percepção. Enquanto a psicanálise trabalha no nível individual, a arte atua tanto no nível pessoal quanto coletivo, explorando as estruturas invisíveis que organizam a sociedade e a subjetividade.
A pintura surrealista, por exemplo, é um campo fértil para essa analogia. Artistas como Salvador Dalí e René Magritte exploraram imagens oníricas que evocam a peculiar lógica do inconsciente, desafiando as fronteiras entre real e imaginário. Obras como A persistência da memória, de Dalí, ou Os amantes, de Magritte, apresentam cenas impossíveis que, por isso mesmo, convocam sentimentos profundos e difíceis de explicar. Não apenas estimulam uma resposta emocional, mas também nos convidam a interrogar os significados subjacentes a nossas experiências e desejos.
De maneira semelhante, a literatura modernista frequentemente assume o papel de revelar as forças ocultas que moldam a vida social. Em Ao farol, de Virginia Woolf, o fluxo de consciência dos personagens expõe os processos internos de pensamento e emoção de forma radicalmente nova (para a época e ainda hoje). Woolf força-nos a enxergar a complexidade do tempo, da memória e das relações, revelando camadas de subjetividade que normalmente permanecem fora de alcance.
Essa ação reveladora da arte vai além do indivíduo. Obras que desafiam normas estéticas ou narrativas muitas vezes expõem as dinâmicas de poder e as desigualdades sociais que sustentam o mundo visível, mesmo que isso não esteja patente. O teatro épico de Bertolt Brecht, por exemplo, rompe a ilusão teatral e ainda incita o espectador a refletir sobre as condições sociais e políticas que estruturam sua realidade. Por meio de técnicas como a interrupção e o distanciamento, Brecht transforma a experiência estética em uma ferramenta de conscientização política sem se tornar panfletário no processo.
Exemplos de obras que desafiam convenções
A história da arte está repleta de exemplos de obras e movimentos que desafiam as convenções e despertam novas sensibilidades. Cada uma dessas obras, à sua maneira, ilumina aspectos da experiência humana que permanecem invisíveis ou ignorados sob a lógica do entretenimento massificado.
A Fonte, de Marcel Duchamp: talvez dos exemplos mais emblemáticos de como a arte pode provocar e reconfigurar sensibilidades. Um urinol que o artista apresentou como obra de arte em 1917. Ao deslocar um objeto do cotidiano para o contexto de uma galeria, Duchamp desafiou a própria definição de arte (enquanto instituição, fosse pela assinatura do urinol, fosse por sua exposição em uma galeria). A provocação não está apenas no objeto em si, mas na pergunta que impõe ao espectador: o que é arte, afinal? A Fonte não é uma obra enquanto gesto que exige reflexão crítica, rompendo com a passividade que o consumo de entretenimento reforça.
Guernica, de Pablo Picasso. A monumental pintura de Picasso, criada em resposta ao bombardeio de Guernica durante a Guerra Civil Espanhola, é uma denúncia da violência e da destruição. A obra rejeita a beleza tradicional e adota uma estética fragmentada e caótica, expondo e refletindo a brutalidade do tema. Guernica não só documenta um evento histórico, como também evoca uma resposta emocional e ética, confrontando o espectador com a realidade do sofrimento recente.
O cinema de Andrei Tarkovski. Conhece-se o cineasta russo Andrei Tarkovski por sua abordagem contemplativa e profundamente espiritual do cinema. Filmes como Stalker e Solaris exploram temas como o tempo, a memória e a transcendência, recusando as narrativas lineares e o ritmo acelerado característicos do cinema comercial. Tarkovski convida o espectador a uma experiência de imersão e introspecção, desafiando a lógica de consumo rápido e oferecendo, em vez disso, um espaço para a reflexão.
Clarice Lispector e o desafio da palavra. Na literatura brasileira, Clarice Lispector é um exemplo incontornável de escritora desafiando convenções narrativas e linguísticas. Em obras como A paixão segundo G.H., Lispector desfaz a experiência subjetiva de maneira radical, questionando as fronteiras entre o eu e o outro, o humano e o inumano. Seus textos exigem do leitor uma postura ativa, requisitando esforço para penetrar no intricado tecido de significados e figurações que ela constrói.
Arte como contraponto à simplicidade
Esses exemplos ilustram como a arte pode funcionar como contraponto à lógica da simplificação que domina o entretenimento. Enquanto o entretenimento tenta oferecer soluções prontas e narrativas fechadas, a arte convida à dúvida, à reflexão e à exploração de possibilidades. Essa diferença é crucial em um mundo que tende a reduzir a experiência ao consumo de mercadorias e ao conforto da previsibilidade.
A arte convida a despertar. Nos reconecta com as dimensões mais profundas e complexas da experiência, revelando o que está oculto e nos permitindo sentir o que jaz ignorado. Em tempos de saturação de entretenimento e anestesia cultural, a arte se mantém como resistência, capaz de reconfigurar nossa sensibilidade e expandir nossa percepção do mundo. Examinemos os desafios e possibilidades da criação artística em um contexto dominado pelo capitalismo cultural, explorando como artistas podem atuar como agentes de transformação.
Assimetria entre arte e entretenimento
A lógica do consumo massificado domina o mundo, o entretenimento ocupa o centro da vida cotidiana, permeia todos os espaços, da televisão às plataformas de streaming, das redes sociais aos jogos eletrônicos, oferecendo experiências projetadas [designed] para consumo rápido e confortável. A arte, por outro lado, está marginalizada: o grande público percebe-a frequentemente como inacessível, elitista ou desinteressante. Essa assimetria não é mero acaso histórico ou estético, mas reflexo da dinâmica estrutural enraizada na economia e na cultura capitalista.
Lógica do entretenimento: consumo e reprodutibilidade
Projeta-se o entretenimento, na sociedade de consumo, para ser fácil, repetível e altamente lucrativo. Desenvolvem-se filmes, séries, canções e jogos com fórmulas que garantem ampla aceitação, frequentemente apelando para emoções primárias, como humor, medo e excitação. Esses produtos seguem padrões narrativos e estéticos que privilegiam o reconhecimento imediato e a previsibilidade, oferecendo ao público exatamente o que espera.
Walter Benjamin, em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, já analisava como a reprodução em massa transformava a relação entre público e obra. Enquanto a arte tradicional era singular, portadora de uma “aura” ligada à sua unicidade (de produção e de contexto), o entretenimento produzido em massa perde essa singularidade em favor da reprodução infinita. Uma canção popular, por exemplo, não precisa de um contexto específico; está disponível a qualquer momento, em qualquer lugar, e é frequentemente consumida como fundo sonoro para outras atividades.
Além disso, o entretenimento é moldado pelas exigências do mercado. Busca atender às demandas do público, bem como estimula (quiçá cria) essas demandas através da publicidade e do controle dos meios de distribuição. Essa lógica manifesta-se de maneira extrema no funcionamento das plataformas de streaming, como Netflix e Spotify, que empregam algoritmos para prever e influenciar as preferências dos usuários. Nesse sistema, o valor da obra não está na profundidade de sua mensagem, mas em sua capacidade de gerar engajamento e retorno financeiro.
Marginalização da arte
Em contraste, a arte frequentemente desafia essa lógica de mercado. Relegam-se às margens obras que não se enquadram nos moldes do entretenimento de massa, rotuladas como “alternativas”, “experimentais” ou “difíceis”. Essa marginalização se deve, em parte, à recusa da arte em oferecer soluções fáceis ou respostas prontas. A arte exige do público um esforço ativo, uma abertura para o estranhamento e a complexidade, características que não se alinham à busca por conforto (através do já sabido) promovida pelo entretenimento.
A marginalização da arte também está ligada ao modo como é distribuída e consumida. Exposições de arte, concertos, peças de teatro e publicações literárias exigem espaços e contextos específicos que, em muitos casos, são inacessíveis para a maioria das pessoas. Além disso, a arte contemporânea frequentemente desafia as normas tradicionais de beleza e significado, o que pode afastar o público acostumado às convenções do entretenimento.
Mesmo assim, essa posição marginal não diminui o poder transformador da arte. Pelo contrário, sua força reside precisamente em sua resistência às convenções dominantes. A arte, ao se recusar a ser reduzida a mera mercadoria, mantém viva a possibilidade de imaginar outros mundos, de questionar o status quo e de abrir espaço para experiências que o entretenimento não pode oferecer.
Arte como resistência: potencialidade transformadora
Embora marginalizada, a arte tem o poder de transformar tanto indivíduos quanto comunidades. Sua capacidade de provocar estranhamento e reflexão pode levar a mudanças profundas na maneira como percebemos o mundo e nosso lugar aí. Essa transformação, no entanto, é frequentemente lenta e sutil, ocorrendo em oposição à gratificação imediata oferecida pelo entretenimento.
Um exemplo dessa potencialidade transformadora está na obra do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, cujos filmes exploram o tempo, a memória e a espiritualidade de maneiras profundamente poéticas. Filmes como Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas desafiam as convenções narrativas tradicionais, oferecendo uma experiência meditativa que convida o espectador a desacelerar e contemplar. Embora esses filmes não alcancem grandes audiências, têm impacto duradouro sobre aqueles que os envolvem contemplam.
Outro exemplo é o trabalho de artistas visuais que utilizam materiais descartados ou reciclados para criar obras que questionam o consumismo e a obsolescência planejada. Esses artistas frequentemente ocupam espaços alternativos, como galerias independentes ou intervenções urbanas, e sua arte serve como lembrete das consequências ecológicas e sociais do consumo massificado.
Desigualdade de alcance e impacto
A assimetria entre arte e entretenimento não se resume à diferença de estilos ou intenções; reflete uma desigualdade estrutural de alcance e impacto. Enquanto o entretenimento domina as plataformas de distribuição e coloniza os imaginários coletivos, a arte luta para encontrar espaço nesse mundo saturado de estímulos óbvios. Essa desigualdade se agrava pela concentração de poder nas mãos de grandes corporações, as quais controlam tanto a produção quanto a circulação de conteúdos culturais.
Entretanto, a arte encontra maneiras de resistir a essa lógica. A internet, apesar de dominada por plataformas comerciais, também oferece oportunidades para que artistas independentes abranjam públicos maiores. Coletivos artísticos, festivais alternativos e projetos comunitários são outras formas de expandir o alcance da arte, criando espaços em que pode florescer.
Essa assimetria entre arte e entretenimento levanta questões fundamentais sobre o papel da cultura e do fomento dessa pelo Estado na sociedade contemporânea. Se o entretenimento reforça as normas estabelecidas e promove o conformismo, a arte tem o potencial de subverter essas normas e abrir espaço para a imaginação criativa. No entanto, para que esse potencial se realize, se faz necessário enfrentar os desafios impostos pelo capitalismo, que subordina todas as formas de expressão a meras mercadorias.
Como a arte pode resistir a essa lógica e atuar como um agente de transformação social? Discutamos estratégias para fortalecer o papel da arte em um contexto dominado pelo entretenimento e analisemos exemplos de movimentos artísticos que conseguiram expandir seu impacto mesmo em condições adversas. A arte, apesar de sua posição marginal, oferece uma visão de mundo diferente, perspectiva que desafia a lógica do consumo e nos convida a imaginar novas possibilidades para a vida coletiva.
Dialética do feio e do estranho
A arte pode perturbar, provocar e desestabilizar convenções estéticas, sociais e emocionais que se escondem sob o senso de normalidade. Essa capacidade de perturbação encontra expressão nítida na feiura: ruptura deliberada com os padrões tradicionais de beleza e ordem. Diferente do entretenimento, que se estrutura em torno do conforto e da familiaridade, a arte que abraça o feio opera no registro do desconforto, desafiando o público a repensar sua concepção de mundo. No entanto, faz-se crucial examinar como esse feio se relaciona com a dialética do estranho (conceito shklovskiano) e da familiaridade capitalista, uma tensão que subjaz a toda produção cultural na era do consumo de massa.
O feio como categoria transformadora
Historicamente, a arte ocidental foi dominada por uma busca pelo ideal de beleza. Desde as proporções clássicas do Renascimento até as paisagens românticas, entendia-se a beleza como sinônimo de harmonia, ordem e elevação espiritual. Todavia, a modernidade rompeu com esse paradigma, abrindo espaço para manifestações estéticas que desafiam ou rejeitam completamente o ideal clássico. Movimentos como o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo colocaram o feio no centro de sua proposta artística, fazendo-o ferramenta para expor as tensões e contradições da sociedade.
No contexto contemporâneo, o feio não é apenas uma subversão estética, mas também uma forma de resistência à homogeneização promovida pelo capitalismo cultural. Enquanto o entretenimento busca agradar o espectador e garantir uma experiência previsível e comercializável, a arte feia recusa essa lógica, propondo uma experiência inquietante, que exige do espectador esforço de interpretação e reflexão. O feio, portanto, não se reduz à ausência de beleza; é uma categoria ativa, ruptura que desafia o espectador a confrontar o que preferiria ignorar.
Entre o desconforto aparente e a familiaridade capitalista
Neste ponto torna-se fundamental analisar a tensão entre o desconforto gerado pela arte e a familiaridade promovida pelo capitalismo. À primeira vista, poderia parecer que o feio e o estranho oferecem uma alternativa radical à estética confortável do entretenimento. No entanto, o capitalismo possui uma notável capacidade de cooptar e neutralizar elementos subversivos, transformando-os em produtos de consumo.
Um exemplo ilustrativo disso: a popularidade de filmes e séries de terror. Embora o gênero seja conhecido por explorar temas perturbadores e imagens que evocam medo e repulsa, frequentemente se apoia em convenções narrativas e estéticas que garantem uma experiência segura e controlada. Mesmo diante do grotesco e do abjeto, o espectador sabe que está em um ambiente familiar, no qual as regras do entretenimento prevalecem. Assim, o desconforto gerado pelo terror mitiga-se por uma estrutura que reafirma a segurança e a previsibilidade da experiência. Essa dinâmica também se aplica aos documentários e podcasts de true crime, que prometem ao espectador um mergulho no perturbador, mas o fazem em um formato altamente codificado, que transforma o horror da violência em um produto consumível. Nesse sentido, o capitalismo consegue domesticar o desconforto, transformando-o em mais uma forma de familiaridade.
A arte feia, por outro lado, resiste a essa domesticação ao recusar a previsibilidade e o conforto. Em vez de oferecer uma narrativa coerente ou uma resolução satisfatória, deixa o espectador em incerteza e suspensão prolongada. Obras como as pinturas de Francis Bacon ou os filmes de David Lynch exemplificam essa abordagem, confrontando o espectador com imagens e narrativas que desafiam tanto as normas estéticas quanto as expectativas emocionais.
O estranho e a desfamiliarização
Para compreender plenamente o papel transformador do feio, faz-se útil recorrer ao conceito de desfamiliarização (ostranenie), formulado por Viktor Shklovsky. Segundo o teórico soviético, a função primordial da arte consiste em propiciar ao espectador perceber o mundo de maneira nova, rompendo com o automatismo da percepção. Ao estranhar o que se supunha familiar, já sabido ou conhecido, a arte reintroduz um senso de novidade e complexidade em experiências que haviam se tornado banais.
Embora o feio e o estranho operem em registros diferentes, partilham a interrupção dos padrões normativos de percepção. O feio faz isso ao chocar e perturbar, enquanto o estranho reconfigura nossa relação com o familiar, revelando suas camadas ocultas. Essa dialética é essencial para entender como a arte pode atuar como força transformadora, desestabilizando as narrativas e valores que sustentam a ordem estabelecida. No entanto, importa reconhecer que a desfamiliarização também pode ser neutralizada pelo capitalismo, que é capaz de transformar o estranho em uma mercadoria atrativa. A popularidade de filmes como O labirinto do fauno, de Guillermo del Toro, ou A bruxa, de Robert Eggers, exemplifica como o estranho pode ser enquadrado em convenções estéticas e narrativas que garantem sua acessibilidade e comercialização.
Dialética entre arte e entretenimento
A partir dessa análise, percebemos que a relação entre arte e entretenimento se marca por uma dialética constante. Enquanto o entretenimento busca reforçar o conforto e a familiaridade, a arte feia e estranha opera com o desconforto e a desfamiliarização. Contudo, essa oposição não é absoluta; o capitalismo cultural está constantemente assimilando e neutralizando as forças subversivas da arte.
Essa dialética também revela as limitações do entretenimento como espaço de transformação subjetiva. Embora ofereça experiências emocionais intensas, raramente desafia os espectadores a questionarem profundamente suas concepções de mundo ou a confrontarem as contradições da realidade. A arte feia, por outro lado, desafia e exige resposta ativa, engajamento além do consumo passivo.
Se o feio e o estranho têm potencial de atuar como forças transformadoras, como podemos fortalecer sua resistência à lógica de assimilação capitalista? Analisaremos estratégias para preservar a autonomia da arte e expandir seu impacto em um mundo dominado pelo entretenimento. A partir de exemplos históricos e contemporâneos, discutiremos como a arte pode continuar a operar como âmbito de resistência e transformação, desafiando normas e expectativas que sustentam a ordem cultural vigente.
A arte feia, com sua capacidade de perturbar e reconfigurar, não se reduz a uma alternativa estética, mas configura uma necessidade política e cultural em tempos de crescente homogeneização e conformismo. Ao explorar essa dialética, esperamos oferecer uma visão mais profunda do papel da arte na sociedade contemporânea e de seu potencial para imaginar e construir um mundo diferente.
Impacto e necessidade da arte como resistência
“A cultura é a regra, a arte é a exceção.” Assim nos alerta Jean-Luc Godard, não apenas com palavras, mas com a imagem que insiste em nos encarar mesmo quando preferimos desviar os olhos. A infame fotografia de Sarajevo, com sua crueza insuportável, recorda-nos que a arte não pode ser reduzida à estética do consumo, à suavidade anestesiante do entretenimento que nos protege do real. Ao contrário, a arte genuína desvia nosso olhar da ilusão de conforto para nos lançar no abismo da existência — abismo marcado por dor, horror e, paradoxalmente, a possibilidade de transformação.
A feiura que denuncia a regra
A feiura, enquanto categoria estética e ética, é a força mais potente da arte em um mundo em que a “cultura” tornou-se sinônimo de conformidade. O feio escancara o que a beleza tenta ocultar: o desequilíbrio, a violência, o absurdo e a injustiça que sustentam as normas de nossa civilização. No entanto, esse feio não é gratuito; é meio de desfamiliarização e resistência.
Enquanto o entretenimento oferece imagens suaves e narrativas redentoras, a arte, feia, confronta com imagens como a do miliciano prestes a chutar a cabeça de uma mulher caída. Não há redenção aqui, nem alívio, apenas a brutalidade nua e crua da vida em seu estado mais violento e o paradoxo visível entre o poder e a fragilidade, a força cruel e a rendição. Essa imagem não pede desculpas por ser insuportável; exige que a encaremos, que sintamos a vergonha, o desespero e o incômodo de pertencer a um mundo capaz de produzir tal cena.
Por que isso importa? Porque a “regra” cultural contemporânea, moldada pelo capitalismo, nos ensina a olhar sem ver, a consumir sem refletir, a sentir sem nos engajarmos. A arte feia quebra esse ciclo, obrigando-nos a experimentar o desconforto como um estado necessário para a compreensão. Nesse sentido, a arte é a exceção — o momento em que rompemos com as convenções da percepção e nos deparamos com a realidade em toda a sua complexidade.
A anestesia do entretenimento
É nesse ponto que a crítica de Godard à “cultura” como dominação industrial mostra-se mais urgente. Vivemos em um mundo em que o mercado sequestrou a estética, a experiência estética transformou-se em mercadoria para consumo rápido e descartável. Já não ficamos com nada, não habitamos nada, tudo muda semanalmente e nada dura — o saber, o entender, como ensinava Nietzsche na introdução a Aurora, demora e demanda que nos demoremos. Filmes de grande orçamento, livros projetados para muitas vendas, séries que prendem nossa atenção apenas para vender assinaturas de streaming — tudo isso não é arte, mas um reflexo da lógica capitalista que reduz tudo ao útil e ao lucrativo.
O problema: nos acostumam a aceitar essa superficialidade como suficiente. Quando estamos anestesiados pelo entretenimento, perdemos a capacidade de encarar o mundo em toda sua profundidade. A fotografia de Sarajevo, por exemplo, não pode ser consumida como um produto de entretenimento; nos repele, nos confronta, nos paralisa. Mas é precisamente essa paralisação que nos obriga a refletir, a contemplar: ver além da superfície.
O entretenimento, ao contrário, nos convida a olhar para outro lado, a nos distrair. Nos oferece narrativas de heroísmo ou de superação que, no fundo, reforçam o status quo. Mesmo o desconforto que provoca é cuidadosamente controlado, de modo que nunca ameace verdadeiramente nossas crenças ou nossa complacência. A arte, em sua forma mais radical, recusa essa lógica. Não nos oferece conforto, mas nos desafia a repensar o que significa ser humano em um mundo em que violência, injustiça e alienação são as normas que regem a vida.
O feio como memória e transformação
Se a fotografia de Sarajevo pode ser descrita como feia, não o é por carecer beleza formal (composição, iluminação, etc.), mas por nos forçar a confrontar o extremo do que somos capazes. Há algo insuportável na imagem de um soldado chutando a cabeça de uma mulher indefesa, mas isso deve ser tão insuportável quanto o fato de essa violência não ser exceção, mas parte da regra que rege nossas vidas.
Aqui, o feio assume papel crucial como memória ativa. Não nos permite esquecer, não nos permite desviar o olhar. Em um mundo de imagens produzidas e descartadas a velocidades vertiginosas, em que tudo se projeta para consumo e esquecimento rápido, a arte, feia, nos força a lembrar. Insiste, resiste. Permanece.
Entretanto, o feio, como memória, é também transformação. Ao nos confrontar com o intolerável, nos desafia a imaginar um mundo diferente. Essa é a força da arte: não apenas refletir a realidade, mas oferecer uma visão crítica que nos permita enxergar além dessa. Nesse sentido a arte configura exceção: rompe com as regras da percepção e nos convida a sonhar com possibilidades que o presente nega.
Entre o horror e a possibilidade
O horror absoluto da fotografia de Sarajevo, tal como descrito por Godard e Sontag, é um testemunho da violência humana, mas também é uma acusação contra a “cultura” que permite tal violência continuar. É uma acusação contra a anestesia do entretenimento, contra a banalização da dor alheia, contra a indiferença que nos permite olhar para essa imagem e continuar com nossas vidas como se nada tivesse acontecido.
Mas a arte, mesmo quando feia, não é apenas uma denúncia; é também possibilidade. Nos recorda que, apesar de tudo, ainda somos capazes de criar, de imaginar, de resistir. Nos lembra que a beleza não está na conformidade, mas na capacidade de romper com as regras ruins e criar algo novo.
Como a música de Arvo Pärt tocando ao fundo de uma imagem insuportável, a arte mantém viva a esperança, mesmo em meio ao desespero. Não uma esperança ingênua ou redentora, mas uma esperança trágica, que reconhece a profundidade do abismo e, ainda assim, insiste em olhar além desse.
Urgência da arte genuína
Concluir esta reflexão é, em última instância, um convite à ação. Se a arte é a exceção, cabe a nós defendê-la contra as forças que buscam subjugá-la à regra. Cabe a nós valorizar o feio, o estranho, o incômodo — não como meras categorias estéticas, mas como atos de resistência em um mundo que prefere o conforto da ilusão à verdade do real.
A arte, feia, em toda a sua crueza e complexidade, recorda-nos de que o mundo não é, e nunca foi, simples ou confortável. Nos desafia a confrontar nossas próprias contradições, a ver além das superfícies, a imaginar algo diferente. E, ao fazer isso, nos oferece uma visão crítica do presente e, a partir dessa, uma possibilidade de futuro.
Então, que possamos olhar para a fotografia de Sarajevo — e para todas as imagens que representa — não com indiferença ou resignação, mas com a coragem de sentir, pensar e transformar. Que possamos, enfim, defender a arte como aquilo que é: a exceção além de toda regra que nos recorda de que ainda podemos resistir e mudar.