segunda-feira, 4 de março de 2024

Sobre arte erótica, pornografia e o escritor como jardineiro

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Quero começar com um insight que tive: o escritor deve agir com a linguagem como o jardineiro: deixar a linguagem florescer e podá-la apenas quando souber que assim crescerá. Tive essa compreensão súbita ao ler a resenha de um filme. Seria uma espécie de kenshō, 見性, um entendimento súbito, profundo, porém breve, fugidio, que se me ocorreu. A subitaneidade do ocorrido parece dizer respeito ao ritmo e à velocidade: sedimenta-se uma compreensão no inconsciente, como uma camada de terra no subsolo ou no fundo do oceano, e tudo se arranja de nova maneira, emergindo novo entendimento, que parece súbito, mas é, em verdade, lento e demorado, habitado por muito tempo.

Um amigo propôs a definição da arte erótica como aquela que levanta questões sobre nós (nós mesmos e uns aos outros) como seres sexuais ou sexuados. Gosto dessa definição.

Infelizmente o vocabulário do erotismo está saturado por sedimentos históricos, inflando sobremaneira sua semântica. Digo isso porque eu jamais definiria a revista Playboy como erótica, mesmo que essa denominação já tenha sido utilizada; preferiria revisá-la e categorizá-la retroativamente revista pornográfica. Afinal, seu foco sempre foi a produção de efeitos precisos (tanto psíquicos quanto fisiológicos).

Não raro penso na divisão sexual, nas diferenças de sexuação, dos modos de desejar de homens e mulheres. Note-se bem que não digo “desejar o outro”, mas apenas desejar, pois creio que seja algo simultaneamente mais amplo e mais subterrâneo que o anseio por relacionamentos erótico-afetivos.

Trata-se da maneira como, ao longo da história, consolidou-se um conjunto de ideais coerentes para o homem e outro incoerente para a mulher. O homem deve prover, ser forte, defender; a mulher divide-se em duas: ou será safada, objeto de anseio erótico, ou será cuidadora, objeto de anseio afetivo. Dessa maneira, os ideais da divisão sexual (o masculino e o feminino) são inalcançáveis por razões distintas. O homem ideal é inalcançável por comparação: nenhum homem provê o suficiente, como o outro (homem), não é tão forte ou não é tão presente, etc.; sempre resta algo para completar a comparação, para fechar o círculo. Já a mulher ideal é inalcançável por impossibilidade, pois safada e cuidadora anulam-se mutuamente, especialmente quando são tomadas pelo olhar tipicamente masculino (armadilhado na comparação insatisfatória explicada acima); a mulher ideal é impossível porque não é uma, mas duas (a amante + a mãe).

Nesse sentido, as redes sociais empurram-nos um ideal masculino feminilizado, pois estão sempre promovendo comparações (seja com pessoas reais, nossos conhecidos, seja com pessoas impossíveis, como os famosos do cinema e dos esportes), mas também estão sempre vendendo mais de uma imagem à qual devemos nos adaptar (trabalhar muito, porém também relaxar, ou ler, mas também aprender habilidades manuais e trabalhos braçais).

Sociedade pornográfica esquizoide: não consegue produzir uma realidade coerente e expõe tudo à vista, não sugere seus meios de atuação, senão os deixa explícitos e os impõe a olhos vistos. Daí que as pessoas “normais” sejam insanas ao extremo, pois insistem que uma fissura é o melhor modo de tapar um buraco, regozijam-se em sua incongruência fundamental.

Partindo-se disso, a melhor literatura e o melhor cinema seriam antipornográficos. Recusam-se a dizer a que lado da divisa pertencem as relações, porque exploram as relações, elaboram-nas, sentem-nas, expressam-nas, descobrem-nas ou até as inventam. Daí o valor universal da grande literatura, pois toca o fundo do ser, o resquício de sua memória anterior à divisão, indo até a relacionalidade das relações, a tela escura donde emergem as figuras que desenham o mundo. Não sem motivo utilizei a palavra “figuras” na frase anterior: gosto de pensar o estudo da literatura como o estudo das figuras (de linguagem), não apenas aquelas convencionadas pela ciência retórica, mas também as figuras que constrói, convenciona, institui e estabelece, bem como o solo donde essas emergem.

Esse estudo da figuração tem algo de espírito de artista, algo que diz mais respeito a Nietzsche que a Kant, para exemplificar. Estudar como as imagens chegam a ganhar corpo, como vêm ao mundo e povoam esse mundo que, sem as imagens, seria deserto e insólito. Mas também, estudar como o toque do sensível, o alcance das imagens, consegue nos transformar e mesmo transformar outras imagens, a história das imagens e as relações entre as imagens e sua história (ou suas histórias). Tudo isso parece se condensar (mas não se explicar) na maneira como os artistas sofrem suas influências.

Se falo dos artistas e suas influências, não temo transformar esse impulso de pesquisa em uma teoria psicológica, pois sei que sigo fiel ao ideal de relacionar textos a outros textos, já que estou sempre preocupado com linguagens. Ainda assim, não haveria problema algum em mobilizar todas as ciências humanas para dar conta do estudo: psicanálise, linguística, estilística, sociologia, história, economia, etc. A divisão disciplinar não importa, pois o humano acontece inteiro a todo momento e a arte é seu sumo, seu resumo mais promissor nos estudos, seu resto mais duradouro e seu registro mais íntimo (exposto).

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