sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Breve nota sobre arte como espelho do humano

A arte pode servir como espelho dialético para o humano. Não se diz espelho simplesmente, senão espelho dialético devido às distorções (ênfases, apagamentos, etc.) postas em arte, com as quais o humano deve se ver. A arte é, portanto, sempre política, mas de uma política própria, possui sua própria politicidade. No narrado e no silenciado de uma narrativa constam porções do humano. O humano inteligibiliza-se (a si mesmo) em constituição ou já constituído, fora de si, mimetizado ou espelhado, narrado ou cantado. Há jogo nesse encontro consigo enquanto semelhante e dissemelhante: generalidade e singularidade dançam. Não que a arte seja antropológica — a arte não é o humano —, mas como a antropologia também dança entre semelhança e dissemelhança humanas, aproximam-se por aí. Num exemplo: há grande dificuldade em compreender como a literatura situa-se no limite das ciências psíquicas: as línguas criam (um)a (ilusão(?) de) psiquê, à qual se reage, durante a leitura, como a uma psiquê real (passeando entre própria e alheia).1 Nessa capacidade de emular (ou até re|produzir) aquilo que o humano toma por seu mais íntimo, a arte expõe como esse íntimo não é próprio nem íntimo (como inacessível e/ou inalterável). A arte partilha com o trabalho ((do) humano) a utilização de materiais alheios e prévios — objetos, coisas, pedaços de mundo, mundos — para a re|composição de si, de seus produtos. A violeta do haiku de Bashô é menção à violeta real encontrada pelo caminho (se isso sequer ocorreu2) e é ideação da violeta e é palavra e é surpresa e é salto à vista e é… Eis a desorganização (e re|composição (ontológica)) operada pela arte: mistura sem confusão — o guarda-chuva e a máquina de lavar se encontram para um café de barro nas costas de um besouro feito de saudades e pigarro.

You can’t love a city (that’s gray).


  1. O fato de haver um “como” na sentença não é gratuito — evidencia (a necessidade d)o jogo das dis|semelhanças.

  2. Esse é outro jogo importante da arte (i.e. das línguas), como canta Elba Ramalho em “Chorando e cantando”, com Geraldo Azevedo: “fazer (e) acontecer (verdades e mentiras)”.

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