terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Memória e lirismo, das agruras do amor

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Dos tempos em que se relacionar ainda era uma bela arte, o eu lírico diz:

Gosto de ti apaixonadamente,
de ti que és o início e os infinitos,
de ti que me trouxeste a natureza
do paraíso em tua presença breve,

com tua linda voz de água corrente;
de ti que tens da Vida a persistência
das coisas duradouras; da beleza
teu é o único corpo concedido

à Terra e enraizado nos enigmas
do sonho. Grande estátua das vontades,
bordão a amparar minha cegueira,

gosto de ti, amor, de ti, mulher,
para sempre a primeira, desde sempre
a última e a mais bela.

Amor, divino amor, faz do humano corpo do ser amado “o início e os infinitos” da poesia, sim, dessa transação interminável a que chamamos linguagem e cujo máximo expoente chamamos poesia, destilação “da beleza” de um “único corpo”, que se reconhece “enraizado nos enigmas/do sonho”, enigmas, como o sonho, sem desvendamento último, sempre movimento e renovação a cada vez, de novo e tanto. Também “início e os infinitos” da memória, essa paisagem interior “enraizada nos enigmas/do sonho”, cujo funcionamento detecta-se tanto como construção — quem seríamos sem nossas memórias? Como nos identificaríamos? —, quanto como limitação — quantas histórias de personagens presos ao passado? Quantas vidas estagnadas pela dor da revivescência? Relembrar, afinal, se repete a alegria do ocorrido (na memória), também repete a dor de seu fim… Essas são as forças orientadoras da escrita de um poeta que, saído de Camanducaia, Minas Gerais, encontrou em Florianópolis, Santa Catarina, o assento para construir um mapa afetivo com seu versejar. Esse mapa conduz-nos por morros, recordações e vozes brotando de tempos e terras esquecidos, sempre com a sofisticação do diálogo com a tradição lírica antiga e moderna, sem se deixar soterrar por essa tradição, constantemente a rejuvenescendo na experiência contemporânea.

Lascas do passado

Aflige-me mais, na poesia de Marcos Oliveira Jr., a aflição ela mesma, a saudade do amor ido, partido aos cacos pelo que vislumbramos apenas nos sinais do arrependimento enumerados exemplarmente, com uma honestidade avassaladora, na lista de todos os ciúmes:

Foram ciúmes do tempo que te acolhe;
das palavras que usas pra encantar
a todos; das canções sem fim de tua
memória; dos cabelos que se prendem
em teus lábios…
cabelos que se envolvem
no teu colo; dos olhos de quem vê
os teus iluminando sempre o mundo
com o amor que te dá tuas ideias;
das tuas mãos que engendram a verdade
nas entranhas da Vida; das guitarras
que te excitam, dos drinques que te arrepiam,
dos cigarros que tu desejas ter;
dos lápis que seguras entre tuas
falanges, dos papeis que não são minha
pele; todas as vezes que esperas
por isso, ela ou ele; do café
que te aquece; dos mapas que tu segues;
das roupas que te cobrem; dos segredos
que tu lembras com carinho; das promessas
que em ti se realizam sempre e lindas;
das receitas tomadas pela tua
atenção; cada série que te faz
sorrir, rua que chamas pelo nome,
bar que encontras ao acaso, livro aberto
e posto sobre o teu corpo perfeito;
dos cheiros que te fazem salivar;
das fotos que se mostram muito perto
de teu rosto; das frutas que tu comes
no verão; do teclado que se farta
com os teus tantos toques; dessa casa
que aguarda muito sóbria a tua volta;
dos travesseiros entre as tuas pernas;
do silêncio em que todas as manhãs
tu buscas aconchego; dos sabores
que fazem aumentar tuas pupilas;
do
all star que te acompanha há tantos anos,
que tu levas a tantos bons lugares;
dos manequins que dizes serem belos;
das ciências que a ti seduzem mais;
da coragem que ostenta a tua incrível
presença aonde quer que tu estejas;
dos parabéns que tens de tantos mestres
e doutores; do teu imperioso
desfile nos caminhos da Via Láctea;
dos ritmos dos teus contos e das rimas
dos teus versos; da astúcia dos teus textos
todos e mais diversos; do teu jeito
austero de enfrentar as injustiças;
do teu choro sincero, limpo e livre;
da tua dor de quem perdeu o medo;
da fortaleza imensa do teu Não;
do único paraíso que é real
e habita o som da tua voz dizendo
Sim; do teu nome só ser o bastante
para que a tua vida seja grande;
dos presentes que tu já recebeste,
dos sonhos que tu contas para alguém,
e tumbas em que tu já repousaste
a tua sombra esplêndida e infinita.

Quanta vida pode-se colher num poema? Na obsessiva recontagem de todas as causas de ciúmes, encontram-se rastros de uma história de intimidade: cigarros, guitarras, canetas, papéis, travesseiros (entre pernas, não menos), cheiros que fazem salivar, receitas, choros sinceros, e até a “dor de quem perdeu o medo” (síntese notavelmente aguda, de percepção ímpar da alteridade dos sofrimentos). Como arqueólogos, lemos os versos recolhendo cacos de uma companhia já ida, uma parceria rompida pelo que foi sentido pela voz poética (ciúmes de tudo e tanto, precisamente). Mas, se o amor permite uma vida — essa vida íntima, partilhada —, também seria impossível viver sem se sentir o que quer que se sinta, de modo que os ciúmes — vividos ou fingidos, como ensinava Fernando Pessoa em “Autopsicografia” (“O poeta é um fingidor:/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente) — merecem seu espaço (e quanto espaço: veja-se o tamanho do poema).

Artesania

Poesia não é confissão, todavia, simulada ou vivenciada, a confissão no lirismo reproduz em nós, durante a leitura, a intimidade (perdida). Esse poder de repetição diz respeito a toda linguagem, porém, nota-se particularmente na linguagem literária, pois a literatura repete a linguagem dos dias, as palavras já todas de roupas amassadas e empapadas de suor da rotina, contudo, não adere a nada do que diz, podendo tornar todo o dito em sarcasmo, ou recusa por mera exposição (figura-se, pelo texto, aquilo com que não se concorda). Esqueça-se isso, não é o caso aqui. A poesia de Marcos Oliveira Jr. retoma o amor, em seus céus resplandecentes e em seus pântanos sombrios, cortando a carne desta época pós-irônica com a faca sutil da sensibilidade aguçada.

Evitando a metapoesia que empobrece os versos do país há 30 (quiçá 40) anos, o camanducaiense expõe a fonte do seu labor verbal na força viva de imagens numa tal síntese que as admirar permanece ainda muito pouco. Se sua temática amorosa aceita toda a história dos relacionamentos íntimos — inicia um poema afirmando: “‘Nunca mais’… Disse tanto adeus.” —, também seus versos estão cheios de medidas e tamanhos não figurativos, uma escansão singular do sentido — no mesmo poema, diz parecer “ter o imenso/fôlego de Moby-Dick” —, pois o espaço é-lhe elemento ativo de composição — “aqui, na cidade onde moro, /as praças são maiores que as estrelas.” Sabe que o ser falante mede o irrepresentável pela sintaxe e brinca com a ausência de pontuação até tornar o leitor esperto o suficiente para não tropeçar na própria respiração, mas sentir roçar sob a língua o rumor do oceano cinza da memória. O poema seguinte expõe resumidamente tudo isso (e mais um pouco).

acordei bobo cheio de lugares só
com nenhuma imagem das primeiras
vezes que parti as frutas do conde

mas sei que nomes demos às nossas árvores
por isso volto para as sombras do pomar
salgadas de saudades do seu corpo

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