Seu trabalho, conforme o aprendeu: remexer cinzas apagadas pelo tempo e, nessas, encontrar algum indício do passado, do presente e mesmo do que ainda viria a acontecer. Sob a superfície enigmática da escrita há um poderoso jogo de adivinhação.
Manter-se cético diante de cada palavra não trai seu ofício, pensa o historiador. A história não se iniciou com o ceticismo de Heródoto diante das histórias que lhe contavam? O historiador sempre foi mestre da suspeita, do duvidar. Nada sei sobre o que pensou o homem (o homem universal da filosofia) do passado; só sei que restaram algumas anotações de sua atividade, as quais o são (se ainda são alguma coisa do ocorrido) como restos e detritos.
Conversam com fantasmas o tempo todo. Passam tanto tempo em meio aos mortos que seu próprio corpo hibridiza-se entre matéria viva e fantasmagórica.
A relação do historiador com seu objeto expõe sintomas característicos da possessão, principalmente entre os que se entregam duramente aos trabalhos em que precisam recuar muito, distante do próprio tempo, do próprio mundo. Risco: trazer algo consigo na viagem de volta, um vírus (potencialmente fatal) germinando em seu interior. Não digo que tragam ideia ou verdade do passado, nem mesmo que façam qualquer descoberta no ou por meio do documento; apenas, que sua viagem ao reino dos mortos traga algo que parece mais vazio e insignificante a princípio: sua palavra.
“Que corram os manuscritos ou que se façam imprimir narrativas”; não é como se isso acontecesse por mágica: “as conquistas de terras e gentes” estão inscritas no que Michel de Certeau chamou “economia escriturária”, em que a escrita passa a ser um novo modo de produção, de transformação e de estocagem da língua. Essa economia consiste também em diversas modalidades de circulação e de uso da escrita, multiplicando seu caráter produtor em gestos e ações; por trás da letra, há um teatro do mundo que lhe encena, há homens e mulheres de verdade, trabalhando e se reproduzindo para que possa ser escrita; a escrita exige dispêndio material e libidinal; constrói ao seu redor não somente um mundo simbólico, de significados e sentidos, mas um mundo material, que exige e descreve uma economia designada para a sua produção e existência. Todo esse mundo escriturário está “calcado tão somente numa exclusão fundadora do que se pode chamar a oralidade e a tradição”. (Andrea Daher. A oralidade perdida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, pp. 19–20)
Historiadores confundem esses sistemas de saber não calcados pela e na escrita pelo nome mito. O historiador limita-se por seu grafocentrismo. A palavra escrita condiciona sua disciplina.
Não creio que palavras transportem qualquer substância mágica que nos permita acessar a experiência do tupinambá, dos goytacazes, ainda mais porque esses nem escreviam. Não quer dizer não contassem histórias: faziam isso por outros meios que prescindiam da escrita. Exterminados os corpos ameríndios, nos quais se inscrevia a palavra, resta-nos conhecer seus discursos anteriores à colonização no que foi registrado pelos invasores espanhóis, franceses e portugueses.
Como se reduziu aquela multidão de línguas ao tupi? Como se exterminaram tantos significantes indígenas da língua corrente? Como se unificaram e descreveram tantos povos por uma só palavra: indígenas? Como e o quê pensava um indígena, um bandeirante, um escravo?
O historiador investe na alteridade velada pelo discurso de quem diz e de quem decifra o dito. Se a história constitui-se em luta de classes, de povos, de culturas, essa luta também se impõe em nível discursivo: a língua de amanhã, de alguma maneira, apagará a de hoje. Como escrever a história de tais apagamentos?
Ignoro se o historiador possa efetivamente chegar a uma visão do passado pela linguagem. Se pode existir esse gênero de psicologia mística que alguns deles nomeiam empatia, intuição; contudo, a desconfiança das continuidades faz-me duvidar de teorias tão calcadas na semelhança.
O convívio mais íntimo revela-se principalmente no inconsciente (ver Freud): por andar entre fantasmas, sem querer (obrigação além de sua vontade), o historiador repõe em circulação as palavras dos mortos. Médiuns vivos e de carne permitem aos fantasmas falarem de novo.
Se o documento é a prerrogativa básica da História, então a História é uma disciplina tardia, a qual só se pode constituir pela crítica a um discurso anterior. Como a disciplina filosófica, a História tenta distinguir verdade de falsidade. Não obstante, só se pode avaliar bem seu compromisso com a verdade se levarmos em conta que essa verdade só se elabora por meio desse discurso primeiro. O historiador, ao contrário do cartesiano filósofo, jamais consegue estar sozinho, na paz de sua lareira holandesa, para (enganar-se) ouvir seu próprio pensamento; sabe que as palavras vêm de outro lugar. Fiel orador dos idiomas mortos, o historiador, antes de tudo, é um gênero de filólogo.
Edição
Substituí locuções verbais por verbos; reduzi enumerações ao essencial.
Comentário
O que mais dizer ao amigo? O passado é mesmo uma urgência do presente, como queria W. Benjamin. As línguas servem de guardiãs à história, seja pelas evoluções fonológicas e suas relações peculiares com as grafias, seja pelo trânsito dos textos. Nem só o historiador nunca está sozinho: também o filósofo, que se julga sábio, mas só pensa com as palavras e as ideias dos outros, porém, pior: sem o admitir. Ignora quanto deve de sua prática ao labor de reconstrução textual. Sua empreitada sistemática reside sobre incerto solo. Mas quem se negaria à mediação do mundo pela palavra, senão o tolo e o estulto?
Obrigado, amigo, por me desafiar sempre.