quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Fantescrita

“A maior prova de que o pensamento se privatizou, de que a escrita é uma mercadoria, é a existência dos ghostwriters, que vendem por inteiro seus direitos autorais, incluindo o direito a ter seu nome na capa. Os ghostwriters provam também o quão vazio é a noção moderna e totalmente jurídica de autor: muitos ‘autores’ não passam de um detalhe na capa, um nome, uma marca. No fundo, como vimos com Mário de Andrade, sempre é assim. Se a nossa epígrafe é verdadeira, e ter uma ideia é fácil, sendo difícil escrevê-la, pois isto implica sangrar, dar o corpo, então podemos dizer que os direitos autorais permitem a prostituição, autorizam o ghostwriter a alienar seu sangue, seu corpo. Há um ditado que diz que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. É possível que ele esteja errado, e que o mais antigo ofício seja o de rapsodo (e Mário concebeu Macunaíma como rapsódia), aquele que coleta e recria experiências e falas alheias, aquele que colhe as ideias da terra e as sangra pelo seu corpo, as aduba com esse seu sangue para que elas possam se espalhar e se frutificar. Nesse sentido, cabe registrar o gesto magistral que o irmão gêmeo (em um sentido mítico) demoníaco de Mário, Oswald de Andrade, foi capaz de dar. No seu romance Serafim Ponte Grande, de 1933, no lugar da nota de direitos autorais, encontramos a seguinte nota anti-autoral: ‘Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas’ (na atual edição do romance, a editora Globo incluiu a nota anti-autoral como parte do romance, ficcionalizando-a, quando, na verdade, constitui uma disposição jurídica de vontade). Oswald sabia, como Godard, que um autor não tem direitos, um autor só tem deveres. As ideias, que vêm do ar, não nos são próprias. E o sangramento, o dar o corpo que a escrita implica, não cabe em um nome.”

Alexandre Nodari (mas, para seguir o texto com boa consciência, não deveria citá-lo, ainda que citar seja a última fronteira em que fazemos de nossas vozes os coros angélicos e de nossas mãos os mil braços de Ganesha).

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