segunda-feira, 9 de novembro de 2020

MitoLógicas #3

Canto do bar; Laila; sapatilha no chão acompanhando o ritmo.

Nada agradável: ritual semanal. Como conseguir parceiro?

Necessário, sem dúvida, um parceiro.

— A vida só é boa a dois. — Diz mamãe.

Ninguém interessante, sem olhar, coração inerte; lentidão em que as damas repousam braços sobre ombros de cavalheiros e rostos se aproximam: colisão de lábios, umidades reconfortantes.

Impasse a resolver? Construir fortaleza interna; dar as mãos ao desconhecido. Vida novamente? Se falta vida, como viver?

Assusta-se com o moço de topete contemplando-a, rosto apoiado na mão, cotovelo sobre a bancada.

— Não quis… — Voz suave.

Inclina a cabeça adiante, ele corresponde. — Não, tudo bem. — Boca aberta: susto; transmutação: sorriso.

Sorrir, sabia?

— Daniel, prazer. — Mão (tão macia quanto a fala) tocando braço, apoio para encontro boca-bochecha.

— Laila, prazer. — Sorrir, sabia.

Por que ele, semblante alegre sem exibir dentes, rosto pacificado, olhar descansado? Consegue acolher o mundo, parece, abraçar, beijar a fronte, fazer cafuné.

Projeção, sim, a terapeuta disse, tudo. Pro-je-ção.

— Gosta daqui?

— Ah! Sim. — Cabeça interrompida em seu trajeto, pescoço rígido. Silêncio. — Bem, na verdade, não sei dizer. — Olhar para aonde? Certeza: não o contemplar.

— Tudo bem. — Suspirado. — Perguntei porque te vi algumas vezes aqui. — Olhar dele sobre si. Encará-lo? Barreira…!

— Então… Eu sento aqui quando venho. Gosto daqui. — Voltar rosto para o dele; amabilidade extraída a custo.

— Ninguém se senta aí durante a semana.

— Será? Como sabe disso? — Pontos se ligando: constelação incerta.

— Também venho aqui… Com mais frequência do que gostaria.

— Temos isso em comum?

— Diria que sim.

Ele encara o chão; observava as sapatilhas? Surpresa. — Não pela razão que imagina.

— Como sabe o que eu penso?

— Não sei, mas presumo.

— Então por que é, se não é por isso?

— Trabalho aqui. — Sorriso de boca enluarada; respiração diferente. Risada sufocada? Olhos nos dele: luta imensa; fitava-a decididamente. — Foi o que consegui ao sair de casa. Sabe como é, família, sangue quente, essas coisas.

— Devo saber… — Como a mão, ali? Recostar mão em mão alheia? Os dedos dele, assim, movimentos regulares, calmos, imperceptíveis. Aconchego?

— Não chega a dar um roteiro de cinema. — Mesma mudança de fôlego. Gracejo?

Ela retira sua mão debaixo das carícias da dele, volta seu rosto para sua bebida. Encontros braços-bancada e taça-boca.

— Perdoe, não quis importunar. — Levanta, alisa paletó, emborca o uísque. Prestes a partir? Gesto: retirada do chapéu que não traz à cabeça. Ela lhe toma os dedos da destra e os entrelaça aos seus. Fica:

— O paraíso… Existe? — Dela, perfura-lhe, o olhar.

— Num encanto desconhecido e inexplicável. — Aproxima-se, acolhe-a, braços cobrindo-a quase inteira.

Ela, cabeça apoiada em seu peito. Murmúrio. — Também te vejo. Sempre.

Luzes frenéticas, dança intensa, no ritmo agitado da canção da moda.

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