domingo, 3 de setembro de 2023

Breves anotações sobre o Barroco retiradas de um diálogo com um amigo

Percebo que o domínio da linguagem me convoca nas leituras “inúteis” (agora) dos barrocos e dos oradores antigos. A maneira como não fingem sinceridade, mas admitem a artificialidade do ofício literário sem, contudo, mentirem, convoca-me. Elaboram uma verdade mais universal porque mais literária, trabalham o material incandescente do vulcão visceral da vida. Nem todos escreveram rebuscado, porque não é isso que importa, ainda que alguns preferiram, sim, as palavras retumbantes. Importava um modo próprio de significar e simbolizar essa bagunça chamada vida, mas significar e simbolizar querem dizer comunicar, dar forma transmissível, comunicável, comunitária.

Como os vanguardistas: apesar de aproximarem-se da psicose em suas várias formas (esquizofrenia, bipolaridade, paranoia, perversão, etc.), não se trata de entregar-se cegamente à barbárie, mas de fazer saber a barbárie que habita a razão, a sombra interna a toda luz. O inconsciente é um caminho, mas certamente não se trata da mera embriaguez imersiva, senão da formação, conceder forma, à loucura que rosna no fundo da plácida voz racional.

Tenho particular predileção pelos barrocos espanhóis, sinto-os mais próximos a Shakespeare que qualquer outro teatro. Por uma questão católica — arte barroca é arte da contrarreforma —, eles viam o mundo como glória do poder e decadência do pecado, ou seja, lusco-fusco, claro-escuro, labirinto. Somado ao impulso didático medieval de representar o feio para estimular o belo, os barrocos forçavam a linguagem aos limites semânticos e sintáticos, mas ainda não ao neologismo e à desordem da literatura moderna, para produzirem essas imagens extremas que serviriam de educação pelo avesso.

O labirinto é — mais que o chiaroscuro — a forma literária do Barroco. Unindo organização de sobrevoo à perda-de-si, o labirinto designa, em um só nome e em uma só arquitetura, o planejamento elaborado (a racionalidade, a alma) à experiência desordenada (a sensibilidade, o corpo). Os textos tornam-se labirintos sintáticos — modelo ciceroniano de períodos extensos nos quais o tema aparece ao final, após longo atraso, segurando a respiração da voz silenciosa com que se lê mentalmente — e semânticos — vocábulos sobrecarregados de nuances de significado, escolha meticulosa dentre sinônimos, alusões sobrepostas a outras alusões produzindo pedras duras (barroco: pérola irregular ou imperfeita) para o entendimento penetrar.

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