sábado, 9 de setembro de 2023

Sobre Mário Quintana

Sobre Mário Quintana

Escreveu Buffon que o cavalo é um nobre animal. Bobagem… Nobre animal é o poeta!1

Mário (de Miranda) Quintana, 1906–94, foi sofisticado demais para o modernismo paulistano. Exercitou aquela poética do cotidiano, da singeleza aguda que se celebra, hoje, na memória da pena de William Carlos Williams e que, a partir desse poeta, influenciou da Beat Generation até a New York School, de Robert Lowell e Allen Ginsberg a Charles Olson, Robert Creeley e Denise Levertov, passando pela San Francisco Renaissance de Gary Snyder. Com seus versos fortemente objetivos, carregados da concretude das coisas, aproximou-se da sofisticação dos extensos símiles da Ilíada, bem como da justaposição de imagens da poesia do leste asiático.

Dentre seus feitos, conta-se a tradução dos primeiros quatro volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Não bastasse essa proeza, traduziu também Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, os Contos e novelas, de Voltaire, O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, a porção final das Ilusões perdidas, de Honoré de Balzac, Palavras e sangue, de Giovanni Papini e até meus queridos Contos de Shakespeare, de Charles e Mary Ann Lamb. Esse último título surpreendeu-me, pois o conheci tardiamente e admirei-o, sem me dar conta de que se tratava de sua tradução. Para os desavisados, trata-se de uma das obras mais populares da língua inglesa, sucesso comercial, livro do século ⅩⅨ, traduzido pelo poeta em 1943 e que segue, até hoje, a única tradução completa dessa obra no Brasil. Destaco uma frase de um personagem das Ilusões perdidas, que Quintana repete em “O mundo de Deus”, de Caderno H:

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac:

O deserto é Deus sem os homens.

A frase repete o final do conto Uma paixão no deserto, de Honoré de Balzac.2

Sua poética dos anos 1970 já alcançava o que Manoel de Barros atingiria em seus livros dos anos 1990.3 Utilizou-se daquela subtilitatem (sutileza) que Cícero atribuía a Lísias como superioridade de sua oratória.4 Devido à objetividade minuciosamente calculada de sua escrita, alcançou outro atributo que também retiro da pena de Cícero: o acumen (agudeza — mais precisamente: acme, ápice) atribuído a Hiperides.5

Se me referi a tantos outros autores durante minha exposição, isso deveu-se apenas à explicitação da grandeza esquecida desse enorme poeta que — tenhamos orgulho — é brasileiro.

Sua utilização da cotidianidade opera na mesma chave de compreensão de Severo Sarduy6: a inclusão dos detritos que deixamos por nossa passagem no cotidiano, pondo em crise os cânones da arte ocidental, pois não se enfatiza a imagem, senão sua destruição, não a forma ou sua fixação, mas a formação, o tornar-se forma de toda forma, trazendo à tona o espaço aberto esquecido atrás de cada frase feita, remetendo a atenção ao lugar escondido em todo lugar-comum. Escapa ao controle do mundo editorial ao recolher seu dizer no cotidiano — tanto o assunto ao rés do chão dos enunciados quanto sua enunciação prosaica —, não se iludindo com triunfalismos modernólatras, senão compreendendo a pegada de destruição deixada a cada passo do progresso nas areias do tempo.

Faz, como dizia, uma arte que Manoel de Barros também produziria depois, ao inventar autorretratos objetais, inumanos, desativando o controle exercido pela sujeição à semelhança óbvia (e à semelhança de todo, em geral). Liberta-se, assim, das amarras da instituição literária editorial, dos limites da palavra contida em sua função de entretenimento. Porém, Quintana traveste sua escrita de facilidade, como a isca do peixe bobo: lança um dito, um ditado7 ao mundo, e recolhe, assim, as atenções, porque diz com as mesmas vestes da palavra pública, da convenção, disfarça-se de clichê, porém não repete a sonoplastia que legenda com um murmúrio anódino a arrogância das imagens, pois sabe que Falar não é apenas trocar informações num esperanto catódico monômano, em que a complexidade dos pensamentos e a obscura violência do mundo se esfumam em clichês infinitamente repetidos e desesperadamente intercambiáveis.8

Em sua introdução à 2ª edição de Baú de espantos (2006 [orig. 1986]) — intitulada “O instante, matéria-prima da poesia” —, Antonio Hohlfeldt afirma que Quintana lia sua própria poesia antes de rabiscar a lápis ou quedar-se à máquina para engendrar nova poesia. Essa continuidade pela leitura de si próprio deve estar sempre em mente de quem o lê e julga-o simplório, pois se engana em seu juízo apressado pelas aparências. Ainda conforme Hohlfeldt, no mesmo texto, a superfície acessível dos poemas de Quintana engana porque seu poder jaz nas alusões, evocações e sugestões que palavras e versos armam.

Sua poesia opera por oposições nem sempre óbvias, senão nuançadas, nas sutilezas do pensamento, como a diferença estabelecida entre anonimato e solidão:

[…] o anonimato é voluntário, é saudável; a solidão é indesejada, é negativa. O anonimato permite o exercício da identidade, da personalidade, do distanciar-se de si mesmo e assim ver-se de maneira crítica; a solidão pode ocorrer até mesmo — e sobretudo — em meio à massificação.9

Dessa maneira, seu uso da linguagem é encantatório, feitiçaria da boa: disfarçada sob o manto do falar fácil, desvela o mundo que se revela em sua basculação nos fulgores cotidianos. Não se trata de enobrecimento da rotina; pelo contrário, a escrita de Quintana aproxima-se daquilo que, no cotidiano, afasta-se do cotidiano, a fim de melhor o enxergar. Sabia, afinal, da reprodutibilidade técnica10 a que sua escrita submetia-se, pois trabalhava para o jornal Correio do Povo.11 Portanto, sabia da queda da aura, da desestabilização provocada pelo ready-made, portanto, do uso da palavra pronta, batida, desgastada e suja pelo dia-a-dia, estranhada por sua ressurgência em meio à poesia, como a flor no lixão.

Uma trama peculiar de espaço e tempo: a aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja. Observar calmamente, em uma tarde de verão, uma paisagem montanhosa no horizonte, ou um ramo que joga sua sombra sobre o observador — é isso que significa respirar a aura dessas montanhas, desse ramo. Estando de posse dessa descrição, torna-se fácil perceber a condição social inerente à deterioração contemporânea da aura. Ela repousa sobre duas circunstâncias, ambas ligadas ao crescimento progressivo das massas e à intensidade crescente de seus movimentos. A saber: “Aproximar as coisas de si” é uma preocupação tão apaixonada das massas de hoje quanto apresenta a sua tendência a uma superação da unicidade de cada coisa dada por meio da gravação de sua reprodução. A necessidade de aproximar o objeto e torná-lo possuível por meio da imagem — ou melhor, da cópia, da reprodução — torna-se mais e mais presente a cada dia. E a reprodução, do modo como é oferecida pelos jornais ilustrados e noticiários cinematográficos, diferencia-se de modo inconfundível da imagem. Unicidade e duração estão tão unidos nesta quanto transitoriedade e repetibilidade naquela. A remoção do objeto de seu invólucro, a destruição da aura, é a assinatura de uma percepção cujo “sentido para o idêntico no mundo” aumentou de tal modo que ela, por meio da reprodução, o extrai até mesmo do que é único. Revela-se, assim, no âmbito intuitivo, aquilo que na teoria se torna perceptível na crescente significação da estatística. O alinhamento da realidade com as massas e das massas com ela é um evento de alcance ilimitado, tanto para o pensamento como para a intuição.12

Esse mundo desvelado através do cotidiano não se revela por puro exibicionismo ou automatismo, senão vem à tona através da indagação, esse modo, privilegiado por Quintana, de abordá-lo no pensamento — por isso seu uso da infância (como as três Memórias inventadas de Manoel de Barros) não se deve a qualquer espécie de nostalgia ou saudosismo. Pelo contrário: recupera uma fase em que o humano está metodologicamente disponível para questionar, descobrir e espantar-se com o descoberto. Dessa maneira, o poeta não limita de antemão sua visão da vida; vale-se da dúvida para conhecer e publiciza esse conhecimento em seus poemas (além do próprio trajeto de pensamento, que vem junto, embutido no poema, como um feliz brinde para a leitura).

Essa compreensão aguda da vida mundana — recordo o acumen que Cícero atribui a Hiperides13 — mostra-se, por exemplo, em Comunhão, poema de Sapato florido (1948), no qual Quintana argue pela leitura do cotidiano por parte dos verdadeiros poetas dizendo o seguinte:

Os verdadeiros poetas não leem os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos jornais.14

Não enfatizarei aqui a menoridade do conhecido trabalho de Deleuze e Guattari sobre literatura, mas os pequenos anúncios indica suficientemente que Quintana pensava também isso, porém à sua maneira — à nossa — à brasileira; e já respondia a Theodor Adorno com a mesma resposta que Paul Celan enunciaria15: faça-se poesia após Auschwitz. E, como Celan, afirma a natureza dialogal, conversacional da poesia, porém já pensando-a desde os Limites da conversação16:

Há certas coisas que não haveria mesmo ocasião de as colocarmos sensatamente numa conversa — e que só num poema estão no seu lugar. Deve ser por esse motivo que alguns de nós começaram, um dia, a fazer versos. Um modo muito curioso de falar sozinho, como se vê, mas o único modo de certas coisas caírem no ouvido certo.

Acrescenta ainda: faça-se poesia prestando atenção às minúcias diárias, às pequenezas cotidianas, às relações entre palavra e comércio (anúncios) e entre palavra e ideário público (dos jornais), lugar-comum, clichê, petrificação da linguagem — à redução burguesa da linguagem à mera negociação, ao comércio, sua subordinação a um instrumento desprovido de qualquer existência exceto quando desaparece como instrumento translúcido para a comunicação, como um transporte instantâneo de conteúdos (concepção virulenta contra a qual se insurge como também insurgia-se Walter Benjamin17).

O jornal, como arquivo da cultura de um local e uma época, guarda a memória coletiva, hegemônica, dos acontecimentos e artefatos que, para o poeta, tornam-se como matérias-primas pré-históricas (considerando-se a história como a passagem à palavra, portanto pré-história na medida em que o poeta recontará a história com esses pedaços de linguagem, seus ready-made verbais, nem sempre em procedimento explícito de citação, por vezes apenas pela alusiva adoção de um tom ou de um registro linguístico suficiente para evocar aquele ambiente discursivo de outrora — evidente quando compara os guindastes a domesticados dinossauros em Matinal, de Baú de espantos18).

Absolutamente atento à modernidade e ao modernismo, discute nominalmente, em breve texto, o imagismo (de Ezra Pound e tantos outros), trata-se de O imagista19:

Arte participante? Nem a dos cartazes! A beleza de um cartaz independe do que anuncia.

A vida não passa de um livro de figuras, para o verdadeiro artista.

E até na poesia (que muitos julgam apenas um desfrute sentimental e outros um jogo do intelecto), até na poesia, se lhe tiram as imagens — que é que sobra? Não sobra nem a alma!

Compreende já a época da imagem do mundo em que se vive, pois convivia, devido ao jornal, com a industrialização da palavra e sua contenção vergonhosa do pensamento, portanto sabe ser necessário responder, por um certo gesto sobre a língua, à vergonha de ficar sem palavras e assujeitado. […] Escreve-se para responder à vergonha de ficar sem língua de tanto usar a língua de todos e de acabar por esse uso restrito ao lugar das representações comuns..20 Sabe, também, que a língua de todos não é a de ninguém21 e deve-se responder a isso fazendo furo no bloco átono22 do falar falso do cotidiano com o próprio furo que se é, como dito em O pobre do espaço23:

O espaço é cheio de buracos: nós, as coisas, os mundos. A perfeição seria o espaço puro, fica ele a pensar com os seus buracos… Mas isso, Sr. Espaço, é uma coisa tão impossível como a poesia pura.

Essa impureza da poesia, contaminada pelo cotidiano e pela frase feita, esburaca-se em

formas que jamais passarão de furos de indefinição nas formas conhecidas, nas imagens fixadas, nos códigos aprendidos, nos objetos rotulados “literários”. Formas que constituirão dificuldade e ruptura porque decidirão justamente por uma impossibilidade de fechar, de concluir, e até mesmo de fazer “obra”. Formas que colocarão a cada vez a literatura em crise. Formas que serão algo como o nome desta inquietação que impele a não se contentar com a experiência do mundo tal como a fixa a língua que falamos juntos, mas a re-presentar e a armadilhar essa representação — a refazê-la.24

O esforço, todavia, segue até o esvaziamento, com a poesia de Quintana desenhando uma motilidade negativa, fazendo surgir o real de uma travessia negativa de blocos significantes já constituídos25, como evidencia-se em O poeta e os exegetas26 (com acidez digna da subtilitatem27 de Lísias, conforme Cícero):

Há anos venho procurando esta raridade bibliográfica: uma edição da Divina comédia sem comentários. Raridade? Creio que nem existe maravilha assim.

Expõe o pensamento enlatado, já não mais pensamento, senão necrose intelectiva, apontado-o com um simples Trecho de carta28:

As palavras de gíria, isso não tem grande importância, meu caro professor: tão logo aparecem, desaparecem.

O pior são essas ideias de gíria…

A própria ideia de gíria de sempre se comentarem as edições de A divina comédia, indistintamente do respeito ao público leitor, sem as preocupações reais pela legibilidade da obra, mas também da liberdade leitora, da exploração do desconhecido (parte essencial da poética de Quintana conforme discutido antes) e cutuca, assim, a ferida das histórias e das críticas literárias, porque capta a armadilha de que Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.29 Ainda em sua clave mordaz sutil, mostra-se a par da natureza narrativa do entendimento e da apreensão da realidade através da inteligibilidade enredada (Quando me perguntam30), no entanto evitando a facilidade dos modismos ou das distinções aparentemente úteis (os jargonismos):

Quando me perguntam por que não aderi a essa história de “estória”, respondo (e não evasivamente) que é simplesmente porque, para mim, tudo é verdade mesmo. Acredito em tudo. Acreditar no que se lê é a única justificativa do que está escrito. Ai do autor que não der essa impressão de verdade! Que é uma história? É um fato — real ou imaginário — narrado por alguém. O contador de histórias não é um contador de lorotas. Ou, para bem frisar a diferença, o contador de histórias não é um contador de estórias. E depois, por que hei de escrever “estória” se eu nunca pronunciei a palavra desse modo? Não sou tão analfabeto assim. Parece incrível que talvez a única sugestão infeliz do mestre João Bibeiro tenha pegado por isso mesmo… Também um dia parece que Eça de Queirós se distraiu e o Conselheiro Acácio, por vingança, lhe soprou esta frase pomposa: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.” Tanto bastou para que lhe erguessem um monumento, com a citada frase perpetuada em bronze! Pobre Eça…

O mundo é assim.

Não bastasse o exemplo, ataca outra vez a distinção enfatizando sua indiferença estratégica ao recolher as Notícias de Bizâncio31:

Como distinguir entre “história” e “estória”, eu que sempre acredito em tudo? Eu, o leitor modelo. Caso contrário, não seria uma ofensa ao poder criador dos autores? Esse monstrinho foi a última novidade que importamos de Bizâncio, a qual, aliás, acaba de ser bombardeada com a abolição dos acentos discriminatórios, conforme a imprensa amplamente noticiou. Bendito bombardeio que um gramático vigente, no entanto, classificou de “reforminha” e um ex-deputado de “leizinha”… Como se nada significasse a morte fulminante dos escavadores de cemitério, dos que desenterraram o verbo “aquelar” enquanto voejava em torno, como um espírito santo lá deles, o fantasma alado do passarinho “toda”.

Desmonta toda ilusão de simplismo de sua poesia com o único e longo verso de Os refinados32:

E há também esses lugares-comuns do paradoxo, que fazem a gente suspirar por uma honesta, uma repousante banalidade…

Magistralmente revela a facilidade (esses lugares-comuns) dos (aparentes) limites do pensamento (paradoxo), confessando a repousante banalidade daquilo que todos sabem e sentem, da vivência comum, a olhos vistos, no único verso de um breve poema, expondo, então, a banalidade ao teste do ridículo, sua (in)capacidade de sobreviver à luz do dia e da consciência, consciência que também faz-se de trevas, paradoxo, e trevas nas quais essa consciência se compraz e distrai, trevas que fazem a gente suspirar, iludem, agradam, tanto quanto descompassam o ritmo (tiram o ar — respiração é, recorde-se, a figura do espírito).

Critica o futuro desde o presente também, com uma Página de história33:

De uma História Universal editada no Século ⅩⅩⅩⅢ: “Os homens do Século Vinte, talvez por motivos que só a miséria explicaria, costumavam aglomerar-se inconfortavelmente em enormes cortiços de cimento. Alguns atribuem o fato a não se sabe que misterioso pânico ao simples contato da natureza; mas isso é matéria de ficcionistas, místicos e poetas… O historiador sabe apenas que chegou a haver, em certas grandes áreas, conjuntos de cortiços erguidos lado a lado sem o suficiente espaço e arejamento, que poderiam alojar vários milhões de indivíduos. Era, por assim dizer, uma vida de insetos — mas sem a segurança que apresentam as habitações construídas por estes.”

À dor atual, responde com motivos que só a miséria explicaria, não há razão suficiente para o sofrimento em que se vive hoje, nem mesmo o olhar futuro ao atual como passado será suficiente para justificar ou compreender. A própria história projetada desde o futuro rumo ao presente como passado não é de melhoria absoluta, senão de dúvida: por que se submeteram a tamanha aglomeração insalubre, se nem mesmo os insetos deixam-se viver em condições tão inseguras? O inferno não está além do mundo, configura-se o destino e rumo do mundo atual.

Sofisticado, sutil e agudo, entende, como Barbara Cassin, que O ser é um efeito de discurso entre outros e a ontologia é uma vergonha34, como se lê em Ser e não ser35:

Para algo existir mesmo — um deus, um bicho, um universo, um anjo… — é preciso que alguém tenha consciência dele. Ou simplesmente que o tenha inventado.

Inventado, do latim inveniō, encontrar ou inventar mesmo. Aquilo que se encontra — com as palavras, com essa mão imaterial, com a ranhura da matéria chamada escrita — é aquilo que se inventa, aquilo que se chama, convoca-se pela palavra. Escrever — também ler — é produzir, prōdūcō, trazer à frente, expor, como Paul Celan anotava em 26 de março de 1969: A poesia já não se impõe, expõe-se36.

Ainda outra vez agudo e sutil, discute ser e não ser, não mais a disjuntiva do príncipe dinamarquês ficcional, senão a aditiva complexíssima e moderna: afirmação e negação de mãos dadas pela rua. Isso culmina na afirmação da diferença produtora, positivada em seu Exame de consciência37:

Se eu amo a meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

Sua atenção para a infância, como já dito, não emerge de pobre e ilusória nostalgia ou saudosismo, senão da percepção de um potencial de renovação da própria percepção pela receptividade, abertura e plasticidade com que a criança acolhe o mundo como influência, matéria-prima e objeto38. Referenciando-se do Qohélet/Eclesiastes, ou seja, na tradição sapiencial, na própria cristalização e enrijecimento da sabedoria — o que é contrário à própria maleabilidade necessária para agir-se sabiamente —, clamando contra o ditado convencional: Mas tudo é novo debaixo do sol!39:

Resmungam os velhos: — “Não há nada de novo debaixo do sol” — e nem se lembram dos que, neste momento, estão recriando o mundo: os poetas, os artistas, os recém-nascidos.

Contra a falsa impressão dos sabichões que já sentiram, já viram, já conheceram, já mapearam tudo, a travessia renovada dos poetas, dos artistas — dos recém-nascidos, aqueles que se deixam afetar pelo encontro com o mundo ainda outra vez e novamente, a cada passo, renovando o caminhar no tropeço, renovando o falar no gaguejo, a respiração, no engasgue. Nem mesmo a menor poeira restará sem questionar, como ao dar-se conta da convenção da onomatopeia do relógio: Mera ilusão auditiva graças à qual a gente ouve sempre “tic-tac” e nunca “tac-tic”… Depois disso, como acreditar nos relógios? Ou na gente?40 Como acreditar na convenção saturada, no clichê, na papa indiferenciada da linguagem cotidiana, comercializada, no continuum prosaico do pensamento que se industrializa e que se limita, no mais das vezes, a comunicar a si mesmo, impondo-se monologicamente sob uma falsa aparência de realismo41.

Por isso postula testemunhas: testemunhas de uma recusa do pálido idioma planetário que se dedicou à repetição do mesmo e que se empobrece à medida que busca o maior denominador comum possível.42 Recém-nascidos, artistas, poetas, velhos, Lili, Sir Bulver-Lytton (que realizava o ideal de todo verdadeiro romancista: ser isento de quaisquer inibições, de respeitos de qualquer ordem, e ver portanto imparcialmente o mundo. Não embelezar, não reformar, não polemizar: — ver!), João Sabiá, também a Suavidade do musgo nos muros gretados, musgo que é também Filó43 (Quando ele morreu, foi logo declarando a sua qualidade, para S. Pedro: “Musgo!”).

Na esteira de sua indiferença estratégica entre história e estória — ambas subsumidas sob o nome de história, pois tudo que faz efeito ocorre, já que o ser é um efeito de discurso —, ao comentar essa obra-prima do barroquismo — refere-se a 8 ½, de Fellini — afirma que o acontecido e o imaginado têm o mesmo poder traumático e o mesmo pé de realidade44 e investe com o barroco contra a frieza do racionalismo clássico: O classicismo pode ser muito lógico, mas é antinatural.45 Mobiliza, então, as estratégias da agudeza e da sutileza, através de arguciosa associação de autores, gêneros, experiências e argumentos cujo liame, conforme arguido, são as questões, as perguntas astuciosas e corrosivas, remexendo os cânones46:

E depois, por que motivo há de a arte clássica significar perfeição? Essa Perfeição, com P maiúsculo, não seria apenas um nome que os bárbaros davam, supersticiosamente, aos padrões de beleza dos civilizados?

Em Picasso, em certos Picassos, a boca, a face, o perfil, as orelhas reajuntam-se, não arbitrariamente e sim para formar uma harmonia nova, de maneira que o seu arreglo final não nos amedronta como um monstro, mas tranquiliza-nos como uma obra clássica. Na poesia há muito já acontecia assim, como na montagem de imagens aparentemente heteróclitas e anacrônicas da “Salomé” de Apollinaire e que, no entanto, serviam para formar a atmosfera dançante, luxuosa, versátil e aérea daquele poema. E foi preciso quase cem anos para que o cinema, como no 8 ½ de Fellini, se integrasse também na poesia. Em resumo: não o desprezo da lógica, mas a aceitação da lógica imagista — o que, como todo verdadeiro modernismo, é tão velho como o mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas.

O verdadeiro modernismo escreve-se com a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas, pois é tão velho quanto o mundo. Moderno mesmo, então, é construir, em face da obscuridade do mundo, uma obscuridade homóloga.47 Adensar a própria linguagem até moldar um mundo nela — moderno, portanto, é o demiurgo (o mais antigo, tão antigo quanto uma deidade) — enquanto atividade mais antiga, primeva, da fala (o ser ainda efeito discursivo). Quintana afinado aos modernos (em 1948 ocorre a exposição 40000 anos de arte moderna: uma comparação de primitivos e modernos48). Afinado, mas não sem sua crítica mordente àquilo que é Dos antigos49:

“Ah, os egípcios! Ah, os etruscos! Ah, os gregos!” Mas essa nossa atitude ante os que nos precederam de milênios é, no fundo, um tanto protetora, não acham? É como se disséssemos: “Meu Deus, como eles eram precoces!”

Como Nietzsche50, ataca o culto ao passado e sabe que o significante já rompeu seu liame com o referente, porque entende que a passagem do objeto à imagem — do cotidiano à poesia — revela um sintoma (esse também um apartamento da referência): o aprisionamento do desejo nas linguagens da demanda (as linguagens cotidianas, institucionais, com e em que nos constituímos), ou seja, expõe o conflito constante, tácito na rotina, como lógica ordenadora do contemporâneo, a tensão ubíqua com e em que se articulam as ficções presentes para significar — dar sentido e nome — ao hoje.

Inserindo e acumulando detritos do cotidiano na linguagem, poluindo-a com resíduos do dia-a-dia, reproduz a sensibilidade e renova o entendimento do que acontece, sem se afastar completamente da vivência em arquiteturas de edifícios conceituais, senão moldando experiências algo transmissíveis com a pasta gosmenta feita da grande política lógico-gramatical da linguagem corriqueira.51 Entende a linguagem de hoje — institucionalizada, controlada, repetitiva, o meme elevado ao quadrado — como espaço do sentido dado de antemão, pré-digerido, pré-cozido, voltando-se, com sua arqueologia do presente — sua coleção de miudezas, insignificâncias —, à experiência da ausência de sentido, do vazio de sentido, da ausência de sentido, do sem sentido que soa ao fundo desses sentidos pré-formatados e pré-moldados. Estigma52 contra círculo, furo contra normose, desintegração.

Nem mesmo aceita — como Nietzsche outra vez — a separação (herdada, recebida de antemão) entre cultura e natureza, exposto ao comparar a beleza interior de certas avozinhas trêmulas, de certos velhos nodosos, que reluz de dentro para fora, e torna-os graves como troncos.53 Tanto physis quanto logos, pensamento e poesia efetuam-se no âmbito do ser, sem cantos escuros de subjetividades hermeticamente seladas, senão a reunião de tudo na e através da linguagem, sua convocação a ser e estar na atenção:

— Mas tu já não falaste na incompreendida beleza dos sapos, na beleza transcendental de um matungo de inverno? Isso é a alma deles?!

— Não, é a minha alma…54

Habitando a imagem (do presente, do mundo, do pensamento), provoca o questionamento do próprio valor da essência (contraposto, canonicamente, à aparência — pergunta pelo valor do valor, pergunta também nietzschiana), recuperando essa imensa sabedoria de pré-socráticos, sofistas e poetas através de O imagista55:

Quando o homem desaparecer, que será das coisas? Morrerão da mesmice de ser. De serem apenas aquele poste ali na esquina, a fonte sorrateira, a bela tabuleta inutilmente colorida, os pacientes relógios sobreviventes. Morrerão da mesmice de serem e não mais parecerem.

Em sua oposição às frases feitas e imagens prontas, também critica o O culto dos heróis: Há muitos para quem a História não passa de uma história em quadrinhos para gente grande, com mocinho e tudo… Principalmente o mocinho!56 Contra as vontades de eternidade, a degradação: Tão belo como um edifício em construção contra um céu azul, só mesmo um edifício em ruínas contra o mesmo céu.57 E para finalizar com o mesmo tom de leveza arguta, de sutileza mordaz com que Roland Barthes (ou Manoel de Barros, ou Salim Miguel, ou Roger Caillois…) pensava a importância da brincadeira e do jogo58:

A Alma e a Geringonça, aí é que está o problema. Seremos acaso uns autômatos cuja complexidade de reações nos faz acreditar num ilusório livre-arbítrio? Essa coisa dos torpedos autodirigíveis dá para desconfiar um bocado… Acontece que somos muito mais complicados do que eles — eis tudo. Mas este jogo de pensamentos em que nos comprazemos é tão limitado como um jogo de palavras. […] Nós só podemos ir movendo as peças, sem esquecer que, embora as partidas pareçam variar ao infinito, o movimento de cada peça é único e as regras do jogo são imutáveis, embora convencionais, como as de qualquer jogo. E, se fôssemos infringir as regras, seria impossível jogarmos. Continuemos, pois, a brincar com a máxima seriedade. Porque jogo é jogo.

Afinal

a sucata, na verdade — seja o que for que tenha sido — é um mero estado transitório do material em disponibilidade. Não tem nada de trágico. A sucata é o material em férias…59

Portanto, Alegremo-nos, irmãos.60


  1. Mário Quintana, Caderno H (1973; repr., Rio de Janeiro: Alfaguara [Objetiva], 2013), e-book.

  2. Conforme cito a seguir, estendido para fins de contextualizar, pois a frase não aparece inteira em Balzac, senão rompida entre os turnos de um diálogo:

    A águia desapareceu no ar, enquanto o soldado admirava o contorno curvo da pantera.

    Mas havia tanta juventude e graça em sua forma! Ela era linda como uma mulher! O pelo louro de seu manto se misturava bem com os delicados tons de branco esmaecido que marcavam seus flancos.

    A luz abundante emitida pelo sol fazia com que esse ouro vivo, essas marcas avermelhadas, queimassem de uma forma que lhes dava uma atração indefinível.

    O homem e a pantera entreolharam-se com uma expressão cheia de significado; a coquete estremeceu quando sentiu o amigo acariciar sua cabeça; seus olhos brilharam como um relâmpago — e então ela os fechou com força.

    “Ela tem uma alma”, disse ele, olhando para a quietude dessa rainha das areias, dourada como elas, branca como elas, solitária e ardente como elas.

    “Bem”, disse ela, “li sua argumentação a favor dos animais; mas como terminaram dois seres tão bem adaptados para se entenderem?”

    “Ah, bem! Veja, eles terminaram como todas as grandes paixões terminam — por um mal-entendido. Por alguma razão, um suspeita que o outro é traidor; eles não chegam a uma explicação por causa do orgulho, e brigam e se separam por pura obstinação.”

    “No entanto, às vezes, nos melhores momentos, uma única palavra ou um olhar é suficiente — mas, de qualquer forma, continue com sua história.”

    “É terrivelmente difícil, mas você entenderá, após o que o velho vilão contou-me com seu champanhe. Ele disse:”Não sei se a machuquei, mas ela se virou, como se estivesse furiosa, e com seus dentes afiados agarrou minha perna — gentilmente, eu diria; mas eu, pensando que ela me devoraria, enfiei minha adaga em sua garganta. Ela rolou, dando um grito que congelou meu coração; e eu a vi morrendo, ainda olhando para mim sem raiva. Eu teria dado todo o mundo — até mesmo a minha cruz, que eu não tinha na época — para trazê-la de volta à vida. Foi como se eu tivesse assassinado uma pessoa de verdade e os soldados que viram minha bandeira e vieram me ajudar me encontraram chorando.

    "‘Bem, senhor’, disse ele, após um momento de silêncio, ’desde então estive em guerra na Alemanha, na Espanha, na Rússia, na França; certamente carreguei minha carcaça por muito tempo, mas nunca vi nada como o deserto. Ah! sim, é muito bonito!

    “’O que você sentiu lá?”, perguntei a ele.

    "’Oh! Isso não pode ser descrito, meu jovem! Além disso, não estou sempre lamentando minhas palmeiras e minha pantera. Eu teria que ser muito melancólico para isso. No deserto, você vê, há tudo e nada.

    "‘Sim, mas explique…’

    “‘Bem’, disse ele, com um gesto impaciente, ‘é Deus sem a humanidade’.”

    Conforme consta em Honoré de Balzac, A Passion in the Desert, trad. Ernest Christopher Dowson, acessado 8º de setembro de 2023, https://www.gutenberg.org/files/1555/1555-h/1555-h.htm, minha tradução ao português.

  3. Penso em obras como Livro sobre nada e O livro das ignorãças — o primeiro cujo título recupera o desejo de Flaubert, enunciado em carta a Louise Colet, desde Croisset, numa noite de sexta-feira à noite, 16 de janeiro de 1852, o francês diz o seguinte:

    O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarras externas, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a terra, sem ser sustentada, se sustenta no ar; um livro que quase não teria argumento, ou pelo menos em que o argumento seria quase invisível, se possível. As obras mais bonitas são aquelas em que há menos matéria; quanto mais a expressão se aproxima do pensamento, quanto mais a palavra se apega a ele e desaparece, mais bonita ela é. Acredito que o futuro da arte está nessas formas. Eu a vejo crescendo, eterizando-se o máximo que pode, desde os pilares egípcios até as ogivas góticas, e desde os poemas de vinte mil versos dos hindus até as explosões de Byron. A forma, ao se tornar hábil, atenua-se; abandona toda liturgia, toda regra, toda medida; deixa o épico em favor do romance, o verso em favor da prosa; não reconhece mais ortodoxias e é livre, como toda vontade que a produz. Essa liberação do material reaparece em tudo, e os governos a seguiram, desde os despotismos orientais até os futuros socialismos.

    O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarras externas, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a terra, sem ser sustentada, se sustenta no ar; um livro que quase não teria argumento, ou pelo menos em que o argumento seria quase invisível, se possível. As obras mais bonitas são aquelas em que há menos matéria; quanto mais a expressão se aproxima do pensamento, quanto mais a palavra se apega a ele e desaparece, mais bonita ela é. Acredito que o futuro da arte está nessas formas. Eu a vejo crescendo, eterizando-se o máximo que pode, desde os pilares egípcios até as ogivas góticas, e desde os poemas de vinte mil versos dos hindus até as explosões de Byron. A forma, ao se tornar hábil, é atenuada; ela abandona toda liturgia, toda regra, toda medida; deixa o épico para o romance, o verso para a prosa; não reconhece mais ortodoxias e é livre, como toda vontade que a produz. Essa liberação do material reaparece em tudo, e os governos a seguiram, desde os despotismos orientais até os futuros socialismos.

    Como se lê em Gustave Flaubert, Cartas a Louise Colet, trad. Ignacio Malaxecheverría, 1976, minha tradução ao português.

  4. Cícero, De oratore, [s.d.], livro Ⅲ, par. 7, sentença 28.

  5. Ibidem.

  6. Em entrevista a Julio Ortega, em 1985, mas também já em sua recolocação da revolução neobarroca de La simulación, Colección Estudios (Monte Avila Editores, 1982), especialmente naquilo que diz a respeito da obra de Robert Rauschenberg.

  7. Como se sabe, o termo alemão Dichtung, nome dado à poesia e, por extensão, à literatura, deriva-se do latino dictō, “eu dito”, ou seja, o ditado.

  8. Christian Prigent, Para que poetas ainda?, trad. Marcelo Jacques de Moraes & Inês Oseki-Dépré (Desterro [Florianópolis]: Cultura e barbárie, 2017), 17.

  9. Antonio Hohlfeldt, “O instante, matéria-prima da poesia”, in Baú de espantos, por Mário Quintana, org. Tania Franco Carvalhal, Centenário Mário Quintana 1906–2006 (Porto Alegre: Editora Globo, 2006).

  10. Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, org. Márcio Seligmann-Silva, trad. Gabriel Valladão Silva (Porto Alegre: L&PM Editores, 2015), final da seção Ⅳ.

  11. Hohlfeldt, “O instante, matéria-prima da poesia”.

  12. Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

  13. Cícero, De oratore.

  14. Mário Quintana, Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos (Rio de Janeiro: Alfaguara [Objetiva], 2012), e-book.

  15. Basta ver o Discurso proferido por Celan quando recebeu o prêmio literário de Bremen:

    Acessível, próxima e não perdida, em meio a todas as perdas, apenas uma coisa permaneceu: a língua.

    Sim, a língua não se perdeu, apesar de tudo. Mas teve que passar por sua própria falta de resposta, por um terrível emudecimento, para passar pelas múltiplas trevas do discurso mortal. Passou e não tinha palavras para o que aconteceu; mas passou pelo que aconteceu. Passou e pôde voltar à luz do dia, “enriquecida” por tudo isso.

    Nessa língua, tentei escrever poemas naqueles anos e nos anos seguintes: para falar, para me orientar, para descobrir onde eu estava e aonde ir, para projetar uma realidade para mim mesmo.

    Foi, como se vê, um evento, um movimento, estar a caminho, uma tentativa de encontrar uma direção. E quando pergunto sobre seu significado, tenho de reconhecer que a questão do sentido horário também tem algo a dizer sobre esse assunto.

    Pois o poema não é atemporal. É claro que contém uma pretensão ao infinito, tenta passar pelo tempo: através do tempo, não sobre o tempo.

    Como é uma manifestação da linguagem e, portanto, essencialmente dialógico, o poema pode ser uma mensagem engarrafada lançada na confiança — certamente nem sempre muito esperançosa — de que possa desembarcar em terra, em algum lugar e em algum momento, talvez na terra do coração. Da mesma forma, os poemas estão a caminho: em direção a algo.

    Em direção a quê? Em direção a algo aberto, ocupável, talvez em direção a um tu alcançável, em direção a uma realidade alcançável pela palavra.

    São essas realidades que são relevantes para o poema.

    E acredito que reflexões como estas não apenas acompanham meus próprios esforços, mas também os de outros poetas das novas gerações. São os esforços daquele que está sendo sobrevoado por estrelas, a obra do homem, e que, sem abrigo, em um sentido até então inimaginável, terrivelmente descoberto, vai com sua existência para a linguagem, ferido pela realidade e em busca da realidade.

    Conforme Paul Celan, “Discurso con motivo de la concesión del Premio de Literatura de la Ciudad Libre Hanseática de Bremen”, in Obras completas, por Paul Celan, org. Carlos Ortega, trad. José Luis Reina Palazón (1958; repr., Madrid: Editorial Trotta, 2002), 497–8, minha tradução ao português.

  16. Quintana, Caderno H.

  17. Walter Benjamin, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, in Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica), por Walter Benjamin, trad. João Barrento, Filô/Benjamin (1916; repr., Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018), e-book.

  18. Mário Quintana, Baú de espantos, org. Tania Franco Carvalhal (1986; repr., Porto Alegre: Editora Globo, 2006).

  19. Mário Quintana, Porta giratória (1988; repr., Rio de Janeiro: Alfaguara [Objetiva], 2014), e-book.

  20. Prigent, Para que poetas ainda?, 15, 83.

  21. Ibidem, 15.

  22. Ibidem.

  23. Quintana, Caderno H.

  24. Prigent, Para que poetas ainda?, 16.

  25. Ibidem, 20, 32.

  26. Quintana, Caderno H.

  27. Cícero, De oratore.

  28. Quintana, Caderno H.

  29. Ibidem.

  30. Ibidem.

  31. Ibidem.

  32. Ibidem.

  33. Ibidem.

  34. Barbara Cassin, “O ab-senso ou Lacan de A a D”, in Não há relação sexual: duas lições sobre "o aturdito" de Lacan, por Alain Badiou e Barbara Cassin, trad. Claudia Berliner, Transmissão da Psicanálise (Rio de Janeiro: Zahar, 2013), 33.

  35. Quintana, Caderno H.

  36. Vide La poésie em Paul Celan, Obras completas, org. Carlos Ortega, trad. José Luis Reina Palazón (Madrid: Editorial Trotta, 2002), 493.

  37. Quintana, Caderno H.

  38. Vide Doutrina das semelhanças e Sobre a faculdade mimética em Walter Benjamin, Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica), trad. João Barrento, Filô/Benjamin (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018), e-book.

  39. Quintana, Caderno H.

  40. Ibidem.

  41. Prigent, Para que poetas ainda?, 8.

  42. Ibidem, 18.

  43. Quintana, Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos.

  44. Quintana, Caderno H.

  45. Ibidem.

  46. Ibidem.

  47. Prigent, Para que poetas ainda?, 82.

  48. “40,000 Years of Modern Art: A Comparison of Primitive and Modern” (London: Institute of Contemporary Arts, 1948).

  49. Quintana, Caderno H.

  50. Friedrich (Wilhelm) Nietzsche, We Philologists, org. Oscar Levy, trad. John McFarland Kennedy, vol. 8, Complete Works of Friedrich Nietzsche (Edinburgh: T. N. Foulis, 1911), https://www.gutenberg.org/ebooks/18267.

  51. Marcio Campos e Patricia Peterle, “A apropriação como enxerto: Da pasta de Danielle Collobert à pasta-palavra de Christophe Tarkos”, Texto Poético 19, nº 38 (2023): 180–204, https://doi.org/10.25094/rtp.2023n38a924.

  52. Que vergonha em gostar-se de Quintana? Lê-lo mais que ele mesmo admitia escrever, investido e recoberto desta glosa intelectual: a substância de uma obra de arte começa exatamente onde a intenção do autor termina; a intenção extingue-se na substância, por isso as motivações do autor são irrelevantes para o trabalho escrito, o produto literário, dessa maneira, entende-se que a intenção é apenas um passo do processo de criação — invenção — artística, então a intenção transforma-se em uma obra somente na interação exaustiva com outros momentos: o assunto, a lei imanente da obra e […] a forma linguística objetiva. […] Quanto mais completamente a intenção do artista for incorporada ao que ele faz e desaparecer nisso sem deixar vestígios, melhor-sucedida será a obra. (Theodor Adorno, Notes to Literature, org. Rolf Tiedemann, trad. Shierry Weber Nicholsen, European perspectives (New York: Columbia University Press, 2019), e-book, minha tradução ao português). Portanto, O artista não é obrigado a entender seu próprio trabalho (Theodor Adorno, Crítica de la cultura y sociedad Ⅰ, org. Rolf Tiedemann et al., trad. Jorge Navarro Pérez, vol. 71, Básica de Bolsillo (Madrid: Akal, 2010), e-book, minha tradução ao português).

  53. Quintana, Caderno H.

  54. Ibidem.

  55. Ibidem.

  56. Ibidem.

  57. Ibidem.

  58. Ibidem.

  59. Ibidem.

  60. Ibidem.

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