domingo, 20 de novembro de 2016

Língua é (também) espaço

As relações entre língua e tempo são bem conhecidas – leva-se tempo para ler um livro, não se pode apreendê-lo em sua totalidade num só instante, de uma só tomada, como seria o caso com um quadro ou uma fotografia. Assim, a língua se desdobra no tempo, tanto quanto a música e a encenação. Essa maneira de pensar é antiga e remonta ao famoso texto sobre Laocoonte, de Lessing. Haveria, segundo o texto, artes temporais e artes espaciais, oposição famosa perdurando até hoje, como descrevi acima. Todavia, não parece frutífero operar com essa divisão, uma vez sabido tempo e espaço intimamente relacionados.

Se a associação da língua com o tempo é famosa, antiga e óbvia, talvez não tanto o seja sua relação com o espaço. Óbvia talvez não, mas há muito está debaixo de nossos narizes: "arqueologia textual", "filologia", e o exemplo mais paradigmático (com toda a redundância dessa expressão), a "arqueologia bíblica" – lembremos: biblos é 'livro' em grego.

Leiamos um bom Machado com seus 'êlle' e 'pharmacia', logo sentiremos a poeira acumulada sobre as páginas – exatamente a poeira, esse ente peculiar capaz de ligar espaço e tempo. O texto logo se torna um sítio arqueológico rico em fósseis, em antepassados, em ancestrais muito similares a nós – rico, portanto, em origens. A língua: um sítio arqueológico – ponto mais fulcral. Acumulam-se sobre as palavras camadas e camadas de sentidos, de ditos, de lugares(-comuns), e é preciso escavar essas sedimentações para se chegar minimamente a algo.

Assim, não discordamos de Lessing, ainda que discordemos: tanto quanto um quadro deve ser demoradamente contemplado, o que uma língua desenvolve no tempo é um espaço, seu espaço – aquilo que fala abre um espaço. Posto o espaço espaça, espacializa, da mesma forma a língua espaça, espacializa. Quer dizer, qualquer proposição sobre o espaço fala a partir de um espaço, dentro de um espaço, ademais de qualquer aparência de estar fora do espaço.

Espaço, portanto, deve ser pensado como abrir espaço, garantir espaço, espaçar, espacializar. Espaço não é propriamente um objeto, nem um ser dentre outros seres. Espaço é a oportunidade para tudo que é. Se alguém só pode dizer de um ser que ele é, então espaço não pode ser. Daí todas as controvérsias, desde Platão ou antes, sobre a 'realidade' do espaço e do mundo "de fora". O espaço reside por e ao seu próprio lado, diferenciando-se de si mesmo, próximo de si mesmo. O espaço, assim, não é divisível, não consiste de partes e não é ele mesmo parte de um todo maior – o espaço não tem fronteiras ou bordas para isolá-lo de outro espaço ou do não-espaço. Espaço não é extensão, senão tensão, tensões, alongamentos, prolongamentos, separações, realce, acento (diérese, sinérese, trema, hiato, circunflexo, agudo, síncope etc.).

Não sendo o espaço diviso, dividido, não pode haver 'contínuo' espacial, somente um 'contíguo' espacial; só pode haver uma contiguidade, não uma continuidade – não é a metáfora a nos guiar o pensamento, portanto, mas a metonímia.

Quem tem livros conhece bem a dimensão espacial desses (trans)portadores de língua. Se a língua não permeia profundamente o social, é impossível conceber o sentido como social, pois haveria uma infinita distância entre a língua e o sentido; sabemos bem que esse não é o caso, o processo de semiose é tão social quanto é semiótico o social.


texto coautorado por Igor S. Livramento e Lu Bouhid

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