segunda-feira, 14 de novembro de 2016

(Elogio?) Da com-paixão

     Compaixão, que palavra! O dicionário me diz que se divide 'com.pai.xão' e que é um substantivo feminino, além disso trata-se de:
  1. Piedade; sentimento de pesar, de tristeza causado pela tragédia alheia e que desperta a vontade de ajudar o próximo, de confortar quem padece de algum mal: papa pede compaixão pelos pobres.
  2. Dó; sentimento de pena: sentia compaixão pelos pobres.

     Ainda me diz que a etimologia é latina: compassio, compassionis. Muito bem. Mas o que quer dizer, afinal? Ora, é óbvio: só pode haver compaixão com paixão! Afinal é com passionis, portanto trata-se dum afeto. Isso nos traz à dimensão terrível do fato: a compaixão é feia, fundamentalmente feia. Não se trata de uma virtude, de um sentimento nobre, elevado, concordante à frieza racionalista, ao indivíduo – vejamos: ela é um afeto, uma afetação, é a incapacidade de separar 'eu' e 'tu', é a indistinção das fronteiras, é o unbound, aquilo que está without boundaries, sem limites, fronteiras, barreiras, divisas, é o indiviso entre 'eu' e 'tu', entre 'eu' e 'outro' (Outro?), daí ser uma afetação, é a incapacidade do sujeito de se aperceber do espaço separatista, de se perceber como a si sozinho, como a si mesmo unicamente.
     Compaixão é agir com paixão, com um desvio de caráter ante a retidão – indício do bom caminho não ser sempre o caminho reto, nem sempre o bom caminho é aquele mais curto entre dois pontos. Assim, estar apaixonado é estar com paixão, tanto quanto para se ter compaixão é preciso estar apaixonado. Entretanto se, como queriam os gregos antigos, a paixão é um excesso, como lidar? Vejamos, mais uma vez, que nos diz o dicionário: 'ex.ces.so', substantivo masculino:
  1. Aquilo que está a mais; quantidade que excede os limites comuns e ordinários de alguma coisa: excesso de indulgência.
  2. Aquilo que excede às normas; o que está a mais dentro de uma escala pré-estabelecida de normalidade, de legalidade etc.: excesso de calorias.
  3. Comportamento desmedido ou desregrado: não precisava falar daquele jeito, aquilo foi um excesso seu.
  4. O que é redundante; em que há redundância.
  5. Abuso: excesso de comida.
  6. Aquilo que resta; o que é remanescente.
  7. Esforço intenso: excesso de dedicação.
  8. Grau extraordinário: excesso de consideração.
     É sintomático, ou no mínimo curioso, que o primeiro significado traga o termo indulgência, precisamente a misericórdia, a facilidade em perdoar que se associa primeiramente ao termo compaixão. Não há nada de mal ou errado nisso, em verdade é muito apropriado perante os fatos. Afinal, quem está apaixonado perdoa mais facilmente.
     Curiosamente, estar apaixonado, ter paixão, é também um abuso, como nos avisa o dicionário. Mas um abuso de quê?! É óbvio que o apaixonado é abusado, abusa-se dele, daí a indulgência e o perdão – mas "um dia o perdão também se cansa de perdoar", como cantaria um de nossos maiores poetas e letristas. Daí a compaixão ser um esforço intenso, como também nos disse o dicionário, um esforço intenso de misericórdia, de clemência e num esforço tão intenso, o sujeito com paixão é aquilo que resta, é só um remanescente, um resto de gente, já não sabe mais distinguir 'eu' e 'tu', sofre com as mazelas alheias, não sabe – oh! pobre dele! – separar sua vida das outras vidas.
     Sim, ter compaixão, estar apaixonado, é um comportamento desregrado, excede às normas, normas que já mencionamos, do 'eu', do indivíduo, in-divíduo, indiviso, aquele que não tem divisões, mas somos mesmo assim tão íntegros, tão inteiros? Por mais que pareçam unidos, há claros sinais de pontos de uniões nos dedos, pulsos etc., muito mais que integridade, há montagem. A montagem do 'eu' com o 'tu' não pode ser boa? É preciso voltar no in-divíduo do passional, onde as fronteiras já se esvaem, fracas, frágeis, indelimitáveis, indefiníveis – sensíveis, sim, porém movediças, permeáveis.
     De fato, excede-se às normas com paixão, pois as normas foram estabelecidas sobre o virtuoso, que não possui paixões, só comedimentos, só vir-tudes, atitudes de vir, 'vir' do latim vir, viri, varão, homem, quer dizer, aquele sujeito que possui "atitudes de homem". Ora, vejam só! Quer dizer que o desvirtuado é o " desprovido de atitudes de homem"? Que mundo, não?! Bem sabemos, contudo, o virtuose é o homem de virtude, é o virtuoso, e ele é excelente, mas apenas num ponto, é excelente somente numa especialidade, mais limitado que o próprio limite, limitante mesmo.
     Se ter compaixão é estar apaixonado, é ser excessivo, estar em excesso, portanto em exceção, é também ser desvirtuado, desviado do caminho reto, do caminho mais curto entre dois pontos, diríamos: olhos que choram enxergam melhor.

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