segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Numa noite qualquer [reescrito]

III
Foi numa tarde qualquer. Não faz muito tempo, tenho certeza. O escritório estava cheio. Lia o jornal, na confortável poltrona, observando, sorrateiro, a porta. Ayira fechou as persianas após servir-nos um bom café. Mirela, sentada no sofá, observando a estante – recheada de livros – enquanto degustava a bebida negra. Meus olhos fecharam-se pesados.

II
Meus olhos abriram vagarosos. Mirela adentrava a sala com proposta de novo caso. Pus-me de pé sem hesitar – senti meu corpo extremamente pesado – toda minha movimentação continuava indiferente a tudo que vivera até ali. Corremos para o cemitério e lá estavam os dois, diante da mesma lápide, sob a mesma chuva – recapitulação de novela. Odeio repetir o passado.

I
Trata-se de quando encontrei Ayira. Vagava solitário pelo cemitério buscando alguma conversa para a noite sem fim. Encontrei-a assim. Dezessete anos, ajoelhada, chorava tanto que a chuva sumia sob as lágrimas. Sem esforço desci a destra pouco abaixo de minha cintura, pouco inclinada, cobrindo a garota com meu guarda-chuva. Tão jovem, tão bela… Virou-se para mim, ergueu-se e abraçou-me, banhando-nos a ambos na fria água derramada dos céus. Correspondi. Nossa cumplicidade, assim nascida, não conhece limites. Voltei para meu apartamento com ela, convidei-a para um banho quente a fim de recuperar-lhe a saúde e ofereci um roupão. Meu primeiro erro.

II
A chuva torrencial recordava aquela cena triste. Eu vi a tristeza gritando do fundo daquela alma, rugindo contra a própria vida. Seus tão amados transmutados em monstruosidades, aberrações vingativas. Eu realmente não sei se deveria me importar com isso. Eu os matei. Ela insistiu, meteu-se em meu caminho, recebeu um corte no braço, nada para preocupações. Vislumbrou seus pais mortos por minhas mãos. Permaneço incapaz de imaginar sua dor. Milena salvou-me da angustiada fúria da jovem cúmplice.

I
Minha consciência me atacou constantemente naquela fria noite. Sentamo-nos em minha cama, Ayira apoiou sua cabeça em meu ombro enquanto eu apreciava um bom vinho. Nunca me esqueci da pergunta… Aquela porcaria ainda martela meu crânio. Quiçá martelará para sempre. Por que ela desejava tanto? Tinha de ser assim? Eu nunca desejei a eternidade, mas, naquele exato momento, eu adoraria que a vida durasse para sempre.

II
Estarrecido, paralisei. Ayira correu – desapareceu no horizonte de nossos olhares. Chorava tanto quanto ou mais que no primeiro encontro. Viver o suficiente torna-se sombrio além de toda luz. Voltamos para o escritório, eu e Milena. O escritório quedou-se silente. Silêncio tão grave e sufocante que mal pude sentar. Noite após noite buscamo-la, encontrando apenas vítimas de sua loucura, todas drenadas do fluido carmesim pelos pequenos furos no pescoço. Eu não sabia o que fazer. Eu nunca soube. Jamais imaginei que isso aconteceria. Evitava pensar que repetiria o erro de Lochech. Eu realmente teria de matá-la?

I
Na mesma semana já me servia seu ótimo café, afirmava ter aprendido com a mãe. Sempre sorridente, estudava à tarde. Morava comigo, pela falta de casa e tutela. Nunca fui bom exemplo. Concedida a vida eterna, eu não havia de ser bom tutor devorando a essência pulsante dos corações na densa noite. Lochech fez-me assim, não gostaria de ver minha jovem companheira também uma criatura das trevas. Mas assim foi, ao revés do meu querer. Lochech apareceu numa noite de neve e ventanias, sequestrou Ayira e a manteve em cativeiro na igreja em que fizemos nossa única… Festa? Serei honesto. Foi um banho de sangue. Ele feriu mortalmente o objeto de minha afeição. Sem opções à minha disposição, fi-la sorrir através das lágrimas. Tornamo-nos iguais. Dois demônios santificados, filhos da mesma treva. Não! Somos melhores que ele! Não fazemos vítimas como ele nos fez!

II
Uma floresta cerca parte da igreja. Encontramo-nos. Ayira, dominada pelos inumanos instintos, gargalhava de meu esforço por proteger os humanos. Mal se dava conta, tola. Minha fraqueza trouxe-a até aqui. Lutamos. Ela matou Milena sem hesitar. Deu cabo do corpo facilmente. Absorveu suas capacidades – aprendeu bem nas silenciosas noites de caçada àqueles que não podem viver na superfície. Todavia, no ramo há mais tempo, sei como se faz um assassinato perfeito. Atravessei seu torso com minha espada de prata. Um último espirro de sangue e…

III
Arregalei os olhos. Suava profusamente. Dormi em minha confortável poltrona, enquanto Ayira perscrutava-me com seus olhos curiosos e sua beleza juvenil eternizada. Milena já havia ido embora há muito. Dia tranquilo. Tão tranquilo que adormeci sem perceber. Tomei um bom banho. Ela também. Deitamos nossas carnes imortais lado a lado. Encaramo-nos demoradamente. Proferiu a mesma questão da primeira vez. Diferentemente àquele fatídico encontro, teve por resposta o que gostaria de ter escutado cinco meses antes.

— Que tipo de relacionamento é o nosso?
— Somos amigos íntimos… Não é? — Respondi, sem saber para onde desviar o olhar.
— Não! Não é! — Fitava-me, indignada.
— Não te arrependes?
— Não quero mentir. É difícil, mas eu consigo lidar. Acho mesmo que posso superar. Eu escolhi isso. Eu… Escolhi passar a eternidade contigo. — Soava firme e certa.
— Vamos dormir. — Beijei sua testa suavemente e cobri nossos corpos.

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