segunda-feira, 31 de março de 2014

Capítulo I - A criação do mundo

            Já brilhava a estrela há muito tempo, despontando no céu antes deste fatídico momento. Descendo a visão se pode ver o deserto, com um trecho quase central bem pisado pelos pés daqueles que por aqui caminham; terras vazias e esquecidas, informe solo fértil de possibilidade. Sucede do deserto uma vasta área de vegetação mediana, com muita grama e algumas árvores, harmoniosamente cantam os grilos do mato, exibindo pequenas fúrias. Mais adiante se vê uma casa de madeira, arruinada, faltam-lhe paredes e portas, as janelas, escancaradas, a porta da frente largamente aberta; cupins roem tudo, por toda parte.
            Adentrando a casa encontramos, logo na primeira sala, um espelho quebrado na parede sem janelas, à frente dele a visão primeira do mundo embala-se freneticamente, nervosamente. Sobre uma cadeira de balanço, que não para desde a infância do tempo, senta-se O Criador Primevo, aquele que modelou tudo que vimos então, conterrâneo e contemporâneo – se é que se pode falar em tempo num momento tão distante e eterno, quase esquecido – daqueles sem rosto. As paredes em derredor estão entre o branco e o carmesim, pintadas de improviso nas furiosas ações do corpo que convulsiona balançando.
            Da cabeça se vê o cabelo, ondulado, puxado para trás, chegando a atingir os ombros em extensão, mas não tocando nesses. O olho esquerdo está à mostra, diferente de boa parte do corpo, não está coberto pelas bandagens; ele se movimenta frenético, buscando olhar para todas as direções que pode alternadamente. O resto do rosto e da cabeça está tampado por bandagens dando voltas e mais voltas sobre si mesma, a boca não se exibe apenas os lábios, mas ele é silencioso, como aqueles que, pelo deserto, vagam.
            O peito exibe a vestimenta soterrada sob os tecidos, uma espécie de vestido branco; o abdome é aonde se podem ver mais amarras, vê-se também uma enorme mancha escura, feita por algum líquido, qual chega a pingar. Continuando a descida, nota-se que é, de fato, um vestido, pois as pernas estão cobertas à maneira de vestido e, também, é outra parte manchada pelo líquido que escurece o tecido, em tons quase vermelhos. Os pés estão firmemente plantados no chão, empurrando a cadeira e o corpo para frente e para trás.
            Observando os ombros não se vê nada, nem nos braços, mas os antebraços e mãos estão trepidantes, agitados. A mão esquerda aperta tão fortemente o apoio que as unhas cravam-se nos dedos, enterrando-se. A mão direita, todavia, segura uma lâmina reta, curta, feita inteiramente de metal, com cabo seguro e lâmina em si. Percebe-se, portanto, que o líquido escurecedor é sangue. O Criador Primevo sangra profusamente, movimentando-se em agonia silenciosa. Sofre, porque quer iluminar o mundo amorfo com sua sabedoria, mas já não vive, porque para iluminá-lo é preciso nascer alguém capaz de fazer isso.
            Com a trêmula destra ele começa a cortar as bandagens da barriga que a canhota segura, insegura. Um corte aqui, outro ali, rapidamente o tecido se foi e o sangue escorre, quase jorra. Dentes agarram e puxam, mordem e mastigam a pele da barriga, do interior dela, tornando tudo mais rápido. Vê-se, todavia, apenas as pontas dos dentes, porque há uma sequência de órgãos que se interpõe entre eles e a pele que mordem. A lâmina faz seu serviço rapidamente, fende os tecidos orgânicos e os acutila vorazmente. O sangue agora sai em amontoados, tal qual fezes moderadamente liquefeitas, o som mesmo quando atingem o chão de tábuas é similar. Um pedaço de órgão aqui outro ali, logo se amontoam os pedaços vermelho escuro, quase marrom, aos pés d’Ele. Tudo que ele pode expressar são gemidos contidos, porque nem mesmo a boca se mexe com liberdade sob as bandagens faciais. Nem ele pode agir com liberdade porque Ela o devora internamente, rendendo-o refém de si mesmo, de suas ações.
            Silêncio... Ou quase, os grilos do mato começam a cantar as Odes de Recepção a Ela. Não parece nada diferente com o que se escutava antes, ainda que se tenha plena certeza de que não há nada de semelhante; é, de fato, outra música. Do corpo imóvel, respiração cessada, começa a sair, pela abertura da barriga, A Luz do Mundo. Ela, banhada no sangue d’Ele, caminha sobre as tábuas, seus sutis e delicados pés deslizam sobre o fétido líquido escuro.
            Ela seguiu, então, para dar a luz ao mundo. Formá-lo, formatá-lo, dignificá-lo e interagir com Aqueles Sem Face, conterrâneos e contemporâneos de seu progenitor.

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