sexta-feira, 5 de maio de 2017

Proposta do LiraMundo

1.       Pensar a poesia como linguagem da voz. Tomando como ponto de partida para a discussão e debate aquilo que Giorgio Agamben propõe em A linguagem e a morte, na esteira de Foucault e Derrida, como diferença entre phoné (voz) e logos (linguagem). Contudo, a voz reivindicada por Giorgio Agamben não é a voz de Aristóteles. Caberia pensá-la como algo mais próximo ao ato de fala, em oposição à linguagem como logos (sistema abstrato, langue). Portanto, dessa distinção derivam dois modos de entender a poesia: voz da linguagem (isto é, como representação de um sistema absoluto, do humanismo hegeliano, em que a negatividade é apenas algo que deve ser mantido à distância, reverenciado, como precursividade fundadora e instituidora, o nomosem que a voz é mero suporte do lirismo). Ou seja, por um lado se propõe questionar a compreensão da poesia pensada como metáfora e, de outro lado, questionar a poesia como linguagem da voz, isto é, como a-teologia ou teo-a-logia, segundo demostrou Giorgio Agamben sobre Mallarmé em A potência do pensamento, em que a poesia assumiria os traços da animalidade pós-histórica (Kojève) e, nesse sentido, o poético seria aquilo em que arcaico e atual se reúnem enquanto traços, restos, indícios, sobrevivências, anomalias selvagens. Dessa maneira, estaríamos discutindo um conceito de contemporâneo para a poesia.

2.      Ainda no âmbito das discussões sobre o contemporâneo na poesia, é importante retomar a reflexão sobre a indagação a respeito do “eu”, dos pronomes e, nesse ponto, tanto Kojève quanto Foucault oferecem-nos pistas para pensar o poético. Hegel dirá que o poético é a passagem da sensação, o sentimento, à consciência. Com Kojève, no entanto, o poético seria o ensaio de pensar uma voz sem negatividade (segundo Agamben) entre o Absoluto (Hegel) e o Ereignis (Heidegger). Entretanto, em nossa proposta de trabalho não abrimos mão de pensar também a noção desenvolvida por Kojève de que as relações entre Amo e Escravo (entre Kant e Sade, para dizer com Lacan) não são mais do que desejo de um desejo. E esse désir de Kojève (desiderium, um saber a partir das sidera, da poeira de estrelas, da constelação benjaminiana) não é Nada (néant) como negatividade ainda dialética, mas é negatividade tomada como neutralidade do Real, que reverte sempre sobre o sujeito e lhe pergunta a partir de sua imobilidade por que ele diz o que diz.

3.      A poesia como memória da linguagem. Numa entrevista radiofônica concedida a André Gillois, em 1951, Georges Bataille dizia que a poesia nasce da desordem do pensamento, porque há algo de profundamente poético em toda desordem do pensamento. A partir do conceito duchampiano de infraleve, poder-se-ia traçar, portanto, uma tangente teórica que viria até a obra de Rauschenberg que, segundo Branden Joseph, postula uma ordem aleatória (JOSEPH, Branden W. Random Order: Robert Rauschenberg and the Neo-Avant-Garde. Cambridge, MA / London. October Book, MIT Press, 2003). Entre outras aproximações, Joseph vincula o interesse de Rauschenberg pelas performances com os escritos de Antonin Artaud, em particular, O teatro e seu duplo, apresentado como conferência no Black Mountain College, o centro de renovação da arte norte-americana nos ‘50, orientado por M. C. Richards, e que Rauschenberg pôde ter assistido. Que o tenha feito ou não é irrelevante de fato, porque o que interessa, em termos de pensar uma estética inoperante, é construir constelações e captar a energia que delas emana. Porque uma das questões que avultam, no processo de anautonomização da arte, é precisamente perceber que aquelas experiências que, originariamente, constituíram experiências-limite da elite intelectual, acabaram por transformar-se, atualmente, em experiências de massa, e como já apontava Giorgio Agamben, uma Stimmung de massa já não é uma música memorável: é tão somente uma enorme balbúrdia e confusão, já que o homem contemporâneo é o primeiro a não ter Stimmung, isto é, vocação. Não é um dado alvissareiro, certamente, mas é algo que revela, porém, a condição exposta do contemporâneo, segundo Giorgio Agamben em A Ideia da Prosa. Portanto, aceitando que o conceito de Stimmung está relacionado com Stimme (voz), e ainda que o verbo stimmen significa “afinar um instrumento”, e por extensão, “estar certo”, “estar no lugar adequado”, o alvo não seria nos empenharmos, à maneira de Roberto Schwarz, no sentido de fixar Que horas são?, mas no de provocar uma desordem no pensamento e conceber as Stimmungen já não como um continuum temporal, senão, como tons, atmosferas, fricções que se processam conforme diferenças gradativas e matizes infraleves que, de certo modo, supõem uma contestação da linguagem descritiva.


4.      Pensando, sobretudo, ainda no “inimigo” da poesia, o logos abstrato, interessa-nos também retomar Henri Michaux, em Par des traits (misto de grafismos e reflexões “casuais”), a partir do qual se reflete/sonha sobre o aquém e o além da língua. Ele solicita uma “língua modesta, mais íntima, […] uma língua sem pretensão, para homens que sabem que nada sabem.” A resistência da poesia, nesse sentido, seria que a poesia resiste ao romance, porque não deseja ter a pretensão de nomear sujeitos. Os vultos da poesia não são necessariamente protagonistas, são figurantes.

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