domingo, 14 de maio de 2017

Um trecho de Harold Bloom, com destaques, apropriado para o pensamento fragmentário

Um trecho de Como e por que ler, de Harold Bloom, com destaques (feitos por mim), apropriado para o pensamento fragmentário, ou um elogio do conto:

"Geralmente, as peças teatrais imitam ações; o mesmo não se aplica ao conto. Eudora Welty, nos dias de hoje, provavelmente, a melhor contista norte-americana, comenta que, na verdade, os personagens de D. H. Lawrence "não se comunicam com naturalidade, não conversam entre si; não falam pelas ruas, mas jorram como fontes, brilham como a lua, rugem como o mar, ou calam-se como as pedras perversas." Lawrence é um visionário extremado, mas a eloquente observação de Welty se aplica a todas as grandes histórias, que devem encontrar a sua própria forma, seja na tradição de Tchekhov ou Kafka. Nos melhores contos, a realidade torna-se fantástica e a fantasmagoria torna-se real e rotineira. Talvez seja por isso que, hoje em dia, tantos leitores evitem as coletâneas de contos, preferindo adquirir romances, mesmo quando os contos apresentam qualidade bem superior.
O conto favorece o tácito, compele o leitor à ação, a discernir as explicações omitidas pelo autor. O leitor, conforme já ressaltei, precisa proceder com cautela, com propósito, e tentar ouvir com a mente. Tal procedimento possibilita ao leitor, por assim dizer, perscrutar o interior dos personagens, ao mesmo tempo em que os ouve falar. O leitor deve pensar nos personagens como se estes fossem seus, e buscar as várias implicações da história, em vez de limitar-se a ouvir o narrador discorrer a respeito das mesmas. Ao contrário do que ocorre com a maioria das figuras que habitam romances, com personagens de contos a evidenciação (ou não) de determinados fatores depende, em grande parte, da capacidade de o leitor perceber as indicações sutilmente fornecidas pelo autor.
De Turgenev a Eudora Welty, e mesmo depois de Welty, contistas têm evitado fazer julgamentos de ordem moral. George Eliot foi eminente romancista, e Middlemarch, Um Estudo da Vida Provinciana (sua obra-prima) contém inúmeros e fascinantes julgamentos dessa natureza. Mas os contistas mais talentosos são tão vagos com relação a julgamentos de valor quanto com relação à continuidade da ação, ou aos detalhes da vida pregressa dos personagens. Nos melhores contos, cabe ao leitor decidir a relevância de quaisquer julgamentos de ordem moral, e, com efeito, pronunciá-los.
O leitor obtém grandes benefícios das elipses, geralmente plenas de significado, encontradas tanto na vertente tchekhoviana quanto na borgiana-kafkiana. Ao mesmo tempo, é preciso cautela na detecção de simbolismo, mais ausente do que presente nos grandes contos. Mesmo o grande conto de horror – O Horla , de Maupassant, não faz do Horla elemento explicitamente simbólico, embora eu tenha sugerido anteriormente a possibilidade de uma relação entre a loucura de Maupassant, causada pela sífilis, e a obsessão pelo Horla observada no protagonista anônimo. Até certo ponto, o simbolismo é tão alheio a um conto de boa qualidade quanto as alusões literárias: Nabokov é a grande, a maravilhosa exceção, nesta minha tentativa de formular uma Lei de Bloom para o conto. Nabokov recorre, frequentemente, à alusão, mas, raramente, ao simbolismo. O simbolismo pode comprometer o conto; o romance dispõe de espaço e tempo suficientes para revestir os símbolos de uma aparência naturalista, mas o conto, necessariamente abrupto, tem dificuldade em evitar que os símbolos pareçam inoportunos.
Concluo este epílogo sobre como e por que ler contos, sugerindo que as vertentes  Theckhov-Hemingway e Borges-Kafka  não são excludentes. Buscamo-las por motivos distintos; se a primeira satisfaz o nosso desejo de realidade, a segunda mostra-nos a ânsia que sentimos pelo que se encontra além da suposta realidade. Claro está, apreendemos cada vertente de modo diverso, buscando a verdade, em Tchekhov, e o avesso da verdade, em Borges. O ato do Gogol criado por Landolfi, ao destruir a esposa-boneca de borracha, afeta-nos tanto quanto o momento em que o estudante de Tchekhov detém-se diante da fogueira onde se encontram duas mulheres infelizes e lhes narra a história de São Pedro. A energia que caracteriza a nossa reação apresenta, em cada caso, uma natureza distinta, mas a intensidade é a mesma."

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